quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Enfermaria em São Paulo atende pacientes em cuidados paliativos

Pela primeira vez, uma equipe de TV entra na Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Estadual, em São Paulo. Médicos e enfermeiros ajudam pacientes a ter bons dias antes da morte.

http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1176736-7823-ENFERMARIA+EM+SAO+PAULO+CUIDA+DE+PACIENTES+TERMINAIS,00.html

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Divulgação de carta alarma especialistas

Psicanalistas e psicólogos criticam gesto da família de liberar documento

O gesto da família da atriz Leila Lopes de divulgar trechos da carta que ela deixou ao se suicidar alarmou especialistas. Eles entendem que a leitura do documento pode estimular pessoas em sofrimento psíquico a repetir o ato.

Os trechos da carta foram liberados pela família de Leila, encontrada morta na quinta-feira passada, e tiveram divulgação ontem em alguns sites e agências de notícias. Tradicionalmente, a imprensa brasileira não publica informação sobre suicídios. O pacto não escrito assenta-se na percepção de que a divulgação dos atos incentiva novas mortes.

O psicanalista Mário Corso considerou grave o precedente.

– Não tem de publicar isso. Não é esclarecedor e não traz vantagem para ninguém. A pessoa deprimida que lê a carta pode se sentir traduzida e motivada por ela. Quem está namorando a ideia da morte e vê esse exemplo, pode reunir coragem – alerta.

O fato de se tratar de uma pessoa famosa, diz Corso, amplifica o risco da divulgação da carta. O psicanalista observa que, no imaginário popular, virar artista da Globo e ser reconhecido na rua, como Leila, representa o ápice do sucesso.

– A pessoa pensa: se ela que é famosa e linda se mata, por que eu que não sou nada disso não vou me matar? – diz o especialista.

Famosos podem influenciar as pessoas, diz especialista

O chefe de saúde mental do Hospital de Pronto Socorro, Jair Segal, também ressalta que a divulgação da carta de Leila Lopes, por ser uma pessoa nacionalmente conhecida, pode influenciar milhares de pessoas por todo o país:

– Pode ser uma escolha, uma definição de problemas para muita gente.

Para Segal, a escolha da família em mostrar detalhes das últimas palavras escritas pela atriz é uma forma de alívio.

– Eles podem estar se sentindo culpados por não ter conseguido impedir. É claro que não têm culpa, mas serve de purgatório – analisa.

A doutora em psicologia Blanca Susana Guevara Werlang, coordenadora do Grupo de Prevenção e Intervenção em Comportamento Violento da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), defende que os meios de comunicação devem falar em suicídio, mas sempre no viés recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS): de orientação, educação e prevenção. A especialista concorda que a divulgação de informações como a carta de Leila Lopes é de risco.

– Pode ser um disparador para quem está em situação de vulnerabildiade. Até se pode publicar que a pessoa deixou uma carta, mas não o teor dela. É preciso ter muito cuidado com isso – avalia.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Tanatologia e Ernest Becker

A morte paira sobre todos nós, mas na maior parte do tempo as pessoas tentam evitar pensamentos sobre ela. O sucesso de produtos antiidade e o aumento da função do hospital, como o defensor da vida além do tempo depois que a qualidade de vida diminui são duas coisas que comprovam isso. Na maioria das culturas, as pessoas evitam pensar sobre a morte, ao passo que em outras, porém, o assunto é considerado fascinante. Uma escola de pensamento inteira é dedicada ao estudo da morte e do ato de morrer - junto com seus processos, como a tristeza. Essa área se chama tanatologia.
Os tanatologistas acreditam que os humanos dividiram a morte numa tentativa de nos fazer acreditar que não vamos morrer. Infelizmente, se não encararmos nossa própria mortalidade - ou até mesmo a mortalidade das pessoas em nosso redor - seremos pegos de surpresa quando a morte inevitavelmente bater a nossa porta. E, pior ainda, deixaremos de viver nossas vidas da melhor forma possível. Os tanatologistas dizem que a pessoa que aceitou sua própria mortalidade irá aproveitar a vida completamente.
As pessoas que estudam a morte - como médicos, donos de funerárias e psicólogos - dizem que, antes do início do século passado, a morte era uma parte bem visível da vida na cultura ocidental. Quando uma pessoa morria, era mais provável que fosse em casa. O corpo dela muitas vezes era colocado em um sofá ou em uma cama na sala de estar, por incrível que pareça, e as pessoas comiam ao redor dela. Os membros da família dormiam perto do corpo da pessoa querida. Elas pediam que fotógrafos profissionais tirassem fotos da família reunida ao redor do corpo, que algumas vezes era apoiado com os olhos abertos para parecer que ainda estava vivo.
Esse processo costumava acontecer por alguns dias, antes que a pessoa fosse enterrada. Adultos e crianças tinham contato com o corpo. Dessa maneira, uma criança se tornava familiarizada com a morte, e estava comprovadamente mais pronta para encarar sua própria mortalidade do que as crianças de hoje.
Então, por que é tão difícil para algumas pessoas encararem a morte? O medo do desconhecido com certeza é uma razão, mas existe um outro aspecto, que é mais sublime e está baseado na medicina moderna.
Há um século, uma pessoa com câncer morreria. Uma pessoa com acesso à tecnologia médica de hoje tem uma chance muito maior de viver. Dessa maneira, algumas pessoas começaram a ver a medicina como um jeito de enganar a morte, e em vez de encarar o fato de que irão morrer algum dia elas esperam que a medicina as salve de seus destinos inevitáveis.
Isso é o que o psicólogo Ernest Becker considerava uma distração. Becker ganhou o Prêmio Pulitzer em 1974 por seu livro "A negação da morte". Becker acreditava que a cultura como um todo servia para nos distrair de nossas mortes iminentes. É como se estivéssemos na mesma montanha-russa, que está se movendo lentamente em direção ao topo. Esse topo é a morte, e cada um de nós acabará chegando a ele. Nessa metáfora, a cultura seria um conjunto de televisões gigantes em cada um dos lados do percurso da montanha-russa, que algumas pessoas escolhem assistir em vez de olhar em direção ao topo e imaginar o que está além dele.
Embora algumas pessoas se deixem distrair, todos nós estamos, contudo, inconscientemente cientes de que nosso tempo na Terra é limitado. Na opinião de Becker, isso causa sentimentos de ansiedade e angústia que são expressados por meio de atos agressivos, como invasões e guerras.
A área de estudo de Becker - conhecida como psicologia da morte - sugere a pior maneira de morrer. Como a cultura tem o potencial de nos distrair para não encararmos a morte, isso pode fazer que desperdicemos nossas vidas. O pior tipo de morte, de acordo com a teoria Becker, seria aquele que sucede uma vida insignificante.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

No banheiro da escola, um tiro

O caso da estudante de 15 anos que se matou com o revólver do pai levanta o problema da falta de controle do acesso de jovens às armas
Elida Oliveira, de Curitiba. Com Andres Vera

O CENÁRIO A fachada do colégio, no centro de Curitiba. Depois do suicídio de uma aluna, a direção optou pelo silêncio
Um tiro de revólver Taurus, calibre 38, calou para sempre a voz de Ana (nome fictício para preservar sua identidade). Em uma fração de segundo, sonhos, planos e projetos da garota de 15 anos ficaram para trás. A bala não a acertou por acidente nem foi disparada por um criminoso. Foi Ana quem puxou o gatilho.
Sua morte permaneceu à margem do noticiário. Nenhum retrato dela foi estampado nos jornais. Era uma adolescente bonita, cujos cabelos escuros contrastavam com a pele clara. Ana estudava no Colégio Bom Jesus, um dos melhores de Curitiba, no centro da cidade. Vivia com os pais – um delegado aposentado e uma enfermeira que prestava serviços comunitários – e com um irmão, de 21 anos, acadêmico de Direito da Universidade Federal do Paraná. Tinha tantos planos que ninguém percebeu o que estava tramando para aquela manhã da segunda-feira 23 de março.
Depois de tomar o café com os pais, Ana vestiu o uniforme – calça preta com listras verdes nas laterais –, calçou o tênis All Star vermelho, pegou a mochila e foi para a escola de carona com o pai. Ao se despedir, combinou com o pai que ele iria buscá-la na saída, às 18 horas. Poucos minutos depois, um estampido mudaria a rotina do Bom Jesus.
Ao entrar na escola, Ana não foi para a sala de aula de uma das 11 turmas do 2º ano do ensino médio, que ocupam o 2º e o 3º andares do prédio. Subiu mais alguns pavimentos em direção à FAE, a faculdade pertencente à mesma instituição. As aulas dos universitários começariam dali a 45 minutos. Às 7 horas da manhã, aqueles corredores estavam praticamente vazios. Não haveria ninguém que a impedisse de fazer o que planejava. Na mochila, carregada de livros e cadernos, Ana trazia um revólver de fácil manuseio, sem travas, registrado em nome do pai. Ninguém notou se o comportamento de Ana estava diferente, tampouco o objeto estranho entrando na escola. Se alguém sabia dos motivos que a levaram ao suicídio, manteve segredo.
Na mochila, ela trazia um revólver de fácil manuseio, que o pai guardava em lugar em princípio seguro. A morte da garota nas circunstâncias em que ocorreu é um caso raro no Brasil. Cinco anos atrás, um em cada oito estudantes de ensino médio no país afirmava já ter visto um revólver na escola. Acredita-se que hoje esse índice seja ainda maior. Suicídios desse gênero, em escolas, são ocorrências raras em termos estatísticos. Mas um dos detalhes alarmantes nesse caso é a facilidade com que se entra em uma escola com uma arma carregada. Em outros países, massacres cometidos em escolas se tornaram um pesadelo para pais, alunos e professores. No Brasil, por ora, o caso mais conhecido ocorreu não numa escola, mas no cinema de um shopping de São Paulo, em 1999: um estudante descarregou uma submetralhadora contra a plateia, matando três pessoas e ferindo quatro.
O que teria motivado Ana a se matar na escola? Quem a conhecia diz que sua personalidade era forte. Ela aparentava uma segurança atípica para a idade. Argumentava bem, defendendo suas ideias em conversas com amigos. Gostava de ouvir música clássica, mas também adorava o rock do Radiohead e do U2. Era prática e decidida. Quando queria um livro ou uma roupa, pesquisava as opções na internet até encontrar o melhor preço. Os pais não lhe negavam nada. Ana gostava de pintura, que praticava desde os 8 anos. Poderia ser uma grande artista plástica, mas pensava em cursar história (outra paixão) e, depois, fazer pós-graduação em história da arte. Já havia tentado alguns esportes, como o judô, mas achava o confronto desnecessário e logo perdeu o interesse. Em algum momento, não se sabe por quê, o desinteresse teria avançado para outros aspectos de sua vida.
Não houve grito nem pedido de socorro. Em silêncio, ela entrou no banheiro e se trancou num dos cinco espaços reservados. Sentada sobre a latrina, disparou contra a boca. Ninguém sabe ao certo como ela chegou a esse ponto. Ana não deixou bilhete algum.
Em todo o mundo, a mesma sensação de vácuo é sentida por amigos e familiares de pelo menos 3 mil pessoas que se matam todos os dias, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) – outras 60 mil tentam e não conseguem. O suicídio continua sendo um tabu na sociedade, embora seja uma questão de saúde pública. Medidas de prevenção podem fazer com que potenciais suicidas mudem de ideia antes de consumar o ato. Locais altos, por exemplo, podem ser isolados por grades que evitem quedas voluntárias. Remédios e produtos químicos que possam causar intoxicação devem ser mantidos fora do alcance de pessoas diagnosticadas com propensão ao suicídio.
Nos minutos após o disparo de Ana, os ânimos ficaram pesados dentro da escola. Ao mesmo tempo que as equipes médicas constatavam a morte da adolescente, os alunos eram informados de que deveriam entrar em contato com suas famílias para voltar para casa. “Eles disseram que uma aluna havia morrido, mas não disseram onde nem quem era. Fomos descobrindo enquanto descíamos as escadas”, diz um aluno do 2º ano. Boatos logo se espalharam: que haveria um tiroteio na escola, que alguém teria se enforcado no banheiro, que a adolescente teria se matado após uma briga com o namorado, que ela poderia estar grávida. Nada disso era verdade. Ana, ao que se saiba, nem mesmo tinha namorado.
Para a família, a dúvida sobre o que levou Ana a cometer o suicídio permanece no ar. “Se for para falar do que aconteceu, deveríamos tratar de bullying, porque armas em escola existe uma em 1 milhão; já bullying acontece em todas as escolas”, disse o pai, referindo-se à violência física ou psicológica repetitiva no ambiente escolar. Uma professora comentou que, se o problema fosse assédio moral, Ana tiraria o caso de letra: “Ela seria a primeira a reverter a situação”, afirma.
Três meses antes da tragédia, porém, Ana procurou os pais e pediu para que eles a levassem a um psicólogo. Dizia sentir-se triste e desmotivada. O pai passou a pegá-la na aula de pintura e levá-la semanalmente a um psiquiatra. No inquérito policial sobre o suicídio apurou-se que ela tomava calmantes para dormir, artifício para controlar a ansiedade que sentia. O único sinal percebido por uma das amigas teria sido uma frase escrita no serviço de recados instantâneos Messenger, o MSN, uma semana antes da tragédia. Ana se intitulou “A menina feita de leite e sangue”. A imagem tanto pode se referir à formação de uma identidade que queria se desvincular da infância quanto ao sangue que ela estava prestes a derramar.
Embora próxima à mãe, Ana, como muitas adolescentes, se desentendia com o pai. As brigas eram constantes. Visto como protetor pelos conhecidos, ele pouco a deixava sair sozinha e fazia questão de levá-la ao shopping, à casa das amigas e à escola, e ir buscá-la. A atitude incomodava Ana e era motivo de constante reclamação.
O ambiente escolar precisa ser um espaço de debate, para o jovem compartilhar seus medos e angústias. É o local ideal para o debate de temas sobre a adolescência e a prevenção da violência, já que muitos estudantes passam mais tempo na escola que em casa. Mas o Colégio Bom Jesus optou pelo silêncio. Funcionários disseram que estão proibidos de comentar o assunto. A direção do colégio não quis se pronunciar, alegando (compreensivelmente) que a morte da adolescente trouxe um grande desgaste para professores, alunos e equipe pedagógica. A direção teria apenas conversado com os estudantes da turma à qual Ana pertencia. Nas demais salas, os professores deveriam decidir, sozinhos, se comentavam ou não o caso.
De acordo com o estudante do 2º ano Filipe Narcolini Kroetz, de 16 anos, alguns professores abordaram os temas vida e moral ao tratar do assunto, relacionando-os às aulas de literatura e filosofia. Para a mãe de uma aluna do 1º ano do ensino médio, que preferiu não se identificar, a escola poderia ter se aproximado mais dos pais e alunos neste momento para discutir os temas pertinentes ao caso. “Não fui instruída pela escola sobre como debater esse assunto em casa”, afirma. “Eles também não convocaram uma reunião de pais para explicar quais sintomas poderiam ter sido percebidos e como fazer para ajudar nossos filhos na transição da adolescência.”
O silêncio prejudica a compreensão e a prevenção de outros casos semelhantes. O Brasil pode ainda estar distante da realidade dos colégios e faculdades dos Estados Unidos, onde alunos armados já provocaram centenas de mortes. As tragédias na Columbine High School, em Littleton, no Colorado, há dez anos, que deixou 15 mortos, e em VirginiaTech, na cidade de Blacksburg, em abril de 2007, com 33 mortes, despertaram em pais, alunos, professores e até na polícia a urgência de adotar medidas preventivas para evitar futuros massacres. “A tragédia de Columbine nos ensinou que o atirador nunca tem um perfil específico, mas que mesmo assim fornece pistas que podem ajudar a polícia ou a escola a prevenir esse tipo de acidente”, diz o jornalista americano Dave Cullen, autor do livro Columbine, ainda sem tradução para o português. É um primeiro passo para lidar com uma situação que pode produzir catástrofes.

Comentário

Ao ler o artigo “No banheiro da escola, um tiro” (Revista Época, p.164-166, mai/2009), uma preocupação me rodeou, dentre tantas outras.
Como educadora, fiquei pensando na Escola Bom Jesus – Curitiba, onde aconteceu o suicídio da jovem Ana (nome fictício) de 15 anos. As escolas, geralmente, não sabem como lidar com esse tipo de situação, afinal escolas preparam para a vida. No entanto a morte faz parte da vida.
Educadores tem que estar preparados para cuidar de situações como essas, pois como ficam os alunos?Os amigos? Os não tão amigos? Os pais? Os funcionários e também os professores? Todos precisarão de apoio para enfrentarem a situação.
É importante falar, discutir o assunto, ouvir, homenagear e principalmente não calar. As escolas, muitas vezes, acham que não falar sobre o assunto é a melhor maneira de “esquecer” e enfrentar a situação.
Puro engano! Numa situação como é a morte, as pessoas sentem necessidade de expor o que estão sentindo – a saudade, o medo, a falta, a raiva, a tristeza e muitos outros sentimentos são despertados numa situação como essa.
Uma escuta sensível por parte dos educadores num momento tão difícil como esse pode fazer uma grande diferença. “Ao escutar o aluno, com seus medos, indagações sobre o morrer e a morte, o professor vai além da disciplinaridade, liberando o aluno a romper com a dicotomia entre o cognitivo e o afetivo. Refletir sobre a realidade vivida dos alunos, valoriza-se cada um em particular, e possibilita um diálogo aberto e plural das necessidades que esses alunos apresentam” (Ariana, 2008, p.24).
O luto não deve ser calado. Silenciar a morte é assumir uma atitude de indiferença perante a situação. É responsabilidade dos profissionais da educação criarem uma postura diferente para lidar com o assunto. Kovács (2003) expressa muito bem esse desejo: “Cabe aos profissionais engajados no processo de rehumanização da morte abrir espaço para a expressão da dor, do sofrimento, numa atmosfera acolhedora, não compactuando com o silenciamento e abafamento trazidos por uma sociedade que fala sobre o ser forte , ou pelo menos discreto e, quando se trata de morte, não incomodar. Um ouvido disponível tem melhor efeito do que calmantes”.
Desejo que a Escola Bom Jesus, junto com seus educadores, consigam fazer o seu papel, enquanto instituição de educação, dando todo o apoio aos familiares, alunos e funcionários, os quais estão passando por uma “dor” tão difícil de suportar.

REFERÊNCIAS:

KOVÁCS, Maria Jùlia. Educação para a Morte: temas e reflexões. São Paulo. Casa do Psicólogo: Fapesp, 2003.

MAGALHÃES, Ariana T. de O. As Representações Sociais da Morte para Professoras e Pais em Instituições de Educação Infantil. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação, UnB: Brasília/DF, 2008.
Ariana Trindade de O. Magalhães
Pedagoga, Psicopedagoga, Especialização em Sexologia, Mestre em Educação pela UNB.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

A CRIANÇA E A MORTE

Ariana Trindade de O. Magalhães
ariana.agilita@gmail.com
Pedagoga (UFRN). Pós-graduada em Psicopedagogia (UCB) e Sexologia (UCAM). Mestre em Educação (UnB)

De tudo, a minha vida estarei atenta
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dela se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-la em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer da vida que tive:
Que não é imortal, posto que é chama
Mas que seja infinita, enquanto dure.



Soneto da Fidelidade
Vinícius de Moraes
Adaptação: Ariana.


Este texto, que foi simplificado, faz parte de um artigo destinado ao curso de mestrado em Educação – UnB, tendo como objetivo refletir as dificuldades que adultos possuem em abordar o tema morte com crianças, a partir de uma abordagem psicanalítica. O trabalho já foi ampliado, com outras abordagens, transformando-se em dissertação de mestrado.
A autora, que há anos vem trabalhando com crianças em escolas, sentiu a necessidade de conhecer e aprofundar o tema após haver percebido que a família, a escola e a sociedade não educam as crianças para perdas, frustrações e, menos ainda, a morte.
Para nortear os primeiros passos desse estudo, que foi ampliado mais adiante, foi realizada uma pesquisa com um reduzido número de professores de educação infantil da rede particular de Brasília, tendo sido encontrados fortes indícios que os professores têm, em sua maioria, dificuldade em trabalhar o tema morte com crianças e pais.
Neste trabalho, a hipótese principal enfoca a importância da relação vincular estabelecida pela criança nas primeiras experiências com a morte dentro do seio familiar para o trato do tema em contextos mais amplos.
PALAVRAS-CHAVE: Morte, perdas, luto.

INTRODUÇÃO
Através da coleta de dados da pesquisa feita com os professores, ficaram constatados, além da dificuldade de falar sobre morte, as seguintes questões: a palavra que melhor representa a situação morte é “perda”, e a explicação mais comum dada ao fato da morte está diretamente ligada a crenças religiosas. A partir desses três aspectos, guiaremos nossa exposição.
Quem quer conversar com uma criança sobre morte? A resposta provavelmente será ninguém. Adultos e especialmente pais, querem proteger as crianças de experiências dolorosas, e a morte de um ente querido é muito triste para todos.
A morte é uma situação que não podemos modificar na nossa vida, um dia ela acontecerá. Não falar sobre o assunto, tentando proteger a criança, poderá dificultar o seu entendimento sobre situações da vida.
Isso não significa dizer que se deve falar sobre morte o tempo todo, mas aproveitar os momentos em que ela ocorra, para se falar com bom senso, sem exageros e sem proteção. É importante perceber que “ as perdas que você acumula ao longo da vida podem tanto potencializar o seu medo da morte quanto ensiná-lo a conviver melhor com a finitude” (Maria Fernanda Vomero, 2003) .
Num levantamento feito nos USA, toda criança irá vivenciar a perda de algo ou alguém, durante a infância. Alguns estudiosos acreditam que a pessoa quando atinge os 18 anos terá testemunhado cerca de 18000 mortes, seja através de desenhos, filmes, livros, programação de TV, morte de pessoas conhecidas, membros da família e animais de estimação. Quando a criança presencia a morte de um animal querido, ela está vivenciando a realidade da perda. Tentar protegê-la disso é inútil ( Kroen, 1996, p.7).
Crianças devem ter a chance de aprender sobre a morte, através de observações e eventos do dia-a-dia. Pais devem oportunizar momentos, ensinando conceitos básicos sobre morte e tristeza. Achando um animal morto ou uma flor, ou mesmo presenciando a morte de um animal de estimação, são momentos perfeitos para compartilharem os “insights” da vida e da morte, incentivando a criança a falar o que ela pensa e sente a respeito do assunto.
De acordo com Bowlby (1985), “Só quando lhe damos informações exatas, simpatia e apoio é que podemos esperar que uma criança reaja à perda com algum realismo. Isso suscita a questão da capacidade que têm as crianças de diferentes idades de serem realistas em relação à morte” (p.312).

ASPECTOS TEÓRICOS
Discutir sobre morte não é novidade, muitos filósofos, historiadores, sociólogos, biólogos, antropólogos, psicólogos e outros discutiram sobre o assunto no decorrer da História, pois a morte faz parte da vida, é uma questão essencialmente humana, e o conceito e atitude que se tem dela tende a se modificar de acordo com o contexto histórico-sócio-cultural. Diante das várias teorias que possibilitam a reflexão sobre morte, daremos ênfase ao enfoque psicanalítico.
Apesar de Freud não mencionar o luto na criança, ele ressalta que as mortes sofridas na infância, em particular as de irmãos pequenos, têm “ uma importância determinante para as futuras neuroses” ( 1900). É do trabalho de luto descrito por ele, que iremos tecer algumas considerações da importância do trabalho de luto com a criança, pois o luto é uma das vias mais importantes de aproximação da relação da criança com a morte.
Freud (1914) nos fala que a morte de um ente querido nos revolta pois, este ser leva consigo uma parte do nosso próprio eu amado, como também nos agrada pois, em cada uma destas pessoas amada, há também algo de estranho.
Esta é a ambivalência de sentimentos, de amor e ódio, que estão presentes nas relações humanas. “Nestes relacionamentos, o desejo de ferir o outro é frequente e a morte dessa pessoa pode ser conscientemente desejada. Por isso, muitas vezes, quando o outro morre, a pessoa que assim o desejou pode ficar com um sentimento de culpa difícil de suportar e, para amenizar esta culpa, permanece um luto intenso e prolongado. Para a psicanálise, a intensidade da dor frente a uma perda, se configura narcisicamente como a morte de parte de si mesmo” (Giorgi, 2006,p.9).
Imaginem esse sentimento de culpa na criança, unido a uma falta e/ou inadequada informação sobre morte, o quão confusa ela ficará. Sentimentos ambíguos são comuns nessa fase, portanto é preciso muita paciência da parte do adulto. A respeito disso, Bowlby cita que “ A perda de uma pessoa amada dá origem não só ao desejo intenso de reunião, mas também à raiva por sua partida e em geral, mais tarde, a um certo grau de desapego. Dá origem não só ao pedido de ajuda, mas às vezes também a uma rejeição daqueles que atendem a esse pedido. Não surpreende que constitua uma experiência dolorosa e difícil de entender” (1985, p.31).
No entanto, quando a criança aprende sobre morte e perdas de um modo real, sensível, ela irá desenvolver bons modos de enfrentar crises reais que terá mais adiante.
Conversar com crianças sobre morte e perdas é um desafio. Ninguém sabe o que dizer e todos desejam que a criança não sofra. A sociedade tenta amenizar, tentando convencer que crianças são resilientes, desse modo deixam de reconhecer que as crianças tanto quanto os adultos necessitam de apoio e esclarecimentos para suportarem a perda.
Estudos tem mostrado que crianças pensam, querem saber e discutem morte, diferentemente em todos as fases do seu desenvolvimento. Muitos adultos rejeitam a curiosidade da criança sobre morte, acreditando que ela é “muito nova” para compreender. De fato, morte tem um impacto significante em todas as idades. Do bebê ao adolescente, as reações serão diversas, porém algo que é importante é que, desde cedo, o adulto crie com a criança a liberdade de compartilharem e demonstrarem suas emoções em todas as situações diárias, para que quando aconteça uma situação mais dolorosa, como é o caso da morte, esse “canal” de expressão de sentimentos já esteja efetivado. Robert e Erna Furman apresentam dados que mostram a capacidade que crianças, mesmo pequenas, conseguem perceber a morte como irreversível e como consequência de causas naturais, porém isso depende daquilo que lhe é dito pelo adulto (p.314).
Quando a criança recebe apoio e permissão para falar sobre morte, ela consegue firmar e ampliar o que aconteceu, como também guardar o “objeto” na memória. Em muitas famílias é proibido tocar no assunto,no entanto, a medida que falamos vamos nos transformando e ganhando força para retomar a vida. “Depois de uma perda, ou a gente fica amarga, ou mais sensível. Nosso objetivo é adoçar a vida sem esquecer nem hipervalorizar a pessoa que se foi” (Gláucia Rezende).
Mesmo que a morte seja um grande golpe para criança, ela pode acreditar na possibilidade de fazer novos laços afetivos com outras pessoas, desde que ela possua uma relação afetiva segura e estável com os adultos que lhe são significativos. Nesse sentido, Freud nos esclarece: “ Embora saibamos que depois de uma perda dessas o estado agudo de luto abrandará, sabemos também que continuaremos inconsoláveis e não encontraremos nunca um substituto. Não importa o que venha preencher a lacuna, e, mesmo, que esta seja totalmente preenchida, ainda assim alguma coisa permanecerá. E, na verdade, assim deve ser. É a única maneira de perpetuar aquele amor que não desejamos abandonar” (p.21).
Nesse caso, a probabilidade de que sejam criadas situações patológicas é miníma. De acordo com Freud, “embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos em que seja superado após certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele” (Freud- p.89).
Por isso, é preciso dar espaço e tempo para que a criança fale, demonstre suas emoções, as quais, aos poucos, vão se re-construindo, dando lugar as boas lembranças, herdadas como exemplo de vida. Evitar passar falsas mensagens do tipo: “seja forte, não chore”, ou “ não gosto mais de você se chorar” ou ainda “ seu pai não ia gostar de você, chorando” e outras, pois de acordo com Bowlby, esses tipos de ordens produzem um dano indizível, principalmente quando falados com desprezo. Ao invés da criança compartilhar sua dor, seu medo, ela assim tratada pode fechar-se em si mesma para suportar sozinha os seus sofrimentos.
De acordo com Rosane Queiroz, “Para superar o luto é importante não sublimar a dor. Faz bem a família se reunir para chorar, conversar sobre o assunto, olhar retratos. Os rituais também ajudam, porque a recuperação é centrada na aceitação” (1999).
O fato da morte não pode ser mudado. Não podemos trazer a pessoa que morreu de volta para a vida, mas podemos recordar os bons momentos, aceitando o fato e procurando viver com a saudade. Fazer com que a criança converse sobre a morte, exponha seu sentimento, compartilhe sua dor e saudade, ajuda-a superar e elaborar este momento tão penoso.
Ajude a criança a superar a morte de maneira positiva. Seja paciente se ela chorar, ficar com raiva, fazer perguntas e expressar insegurança e frustração, porém seja firme, pois ser paciente não significa permitir comportamentos inadequados. Mostre-a o quanto você a ama e se preocupa com ela, e que existem outras maneiras de expressar esses sentimentos de perda.
Outra forma que ajuda a superar a morte positivamente é a homenagem. Homenagear uma pessoa querida que morreu é uma forma de promover a aceitação e ajudar a enfrentar o medo, a dor e a solidão.
Criar e ler histórias, fazer poesias, músicas, qualquer atividade artística ajuda na elaboração da perda, seja para homenagear o morto ou como maneira da pessoa extravasar seus sentimentos, pois sabemos o quão é difícil, para algumas pessoas, expressarem-se através da palavra.
De acordo com Pitta, “…o espaço da dor é muito subjetivo, ele precisa de tempo, de acolhida, de proximidade, de uma escuta amorosa para aquela travessia”. Cada um reage a perda de uma forma muito individual, é preciso ter respeito a dor do outro. Shand (1920) nos fala sobre a complexidade da natureza do sofrimento, e como seus efeitos são diferentes e variados para cada indivíduo, sendo muito difícil, ou impossível que um autor conheça a fundo todas essas variáveis (p.36).
Os rituais de morte, considerados inconvenientes para muitas pessoas, são importantes para a elaboração e significação da morte. “ Para que a morte de um ente querido não assuma formas obsessivas no inconsciente é necessário ritualizar essa passagem”(Giorgi). Alguns antropólogos discutiram a importância dos ritos fúnebres na vida social de um povo e concluíram que “ Seu objeto ostensivo é a pessoa morta, mas ele beneficia não o morto, mas os vivos...são para os que ficam...que o ritual é realmente realizado” (Firth,1961,p.140).
No caso da criança, ela pode e deve participar dos rituais seguidos a morte, porém com explicação do que ela irá presenciar, ouvir e participar, deixando-a livre para decidir se irá ou não. “Criança pode ir a velório e receber respostas honestas sobre a morte, em vez de explicações fantasiosas, como a de que a pessoa viajou ou virou uma estrela. No dia-a-dia, é preciso tratar as perdas como parte da vida. Ensinar sobre a finitude ajuda a objetivar a existência, reduzindo a angústia existencial”( Rosane Queiroz, 1999). “Os rituais de morte servem para a compreensão ‘social’ do fenômeno: ajudam a digerir o impacto provocado pela perda do outro e funcionam como fator de agregação daquela sociedade “ (Guillermo Ruben, Unicamp).
Conforme as citações anteriores, os rituais proporcionam familiares e amigos a compartilharem a dor da perda, a tristeza. A solidariedade ajuda no processo de superação, pois ao mesmo tempo que necessitamos do outro, sabemos o quão somos importante para ele.
Outra forma saudável de aceitação da morte é dada pelas crenças religiosas. No entanto, é necessário que a família já compartilhe dessas idéias antes do acontecido. De acordo com Bowlby, a respeito da morte de um dos pais ele enfatiza “Só quando o genitor sobrevivente acredita sinceramente em idéias religiosas ou filosóficas sobre a morte, e sobre uma vida depois da morte é que se torna útil transmitir tais idéias aos filhos, em outras circunstâncias, a complexidade dessas idéias e a dificuldade de distinguir entre morte física e morte espiritual deixam a criança intrigada e confusa, podendo abrir entre ela e o genitor sobrevivente um abismo de desentendimento” (p.314).
Para Maria Júlia Kovács, coordenadora do LEM da USP, “pesquisas demonstram que pessoas com forte grau de envolvimento religioso, independente da crença, geralmente têm menos medo da morte”. Para o psicanalista Roosevelt Cassorla o indivíduo consegue encontar na religião a aceitação da finitude e encontrar certezas sobre o motivo da vida, da morte e do que acontece após a morte.
Na pequena amostra feita com as professoras de educação infantil, ficou evidente a influência que a religião possue para melhor suportar as indagações provocadas pela morte. Porém, deve-se ter o cuidado de compartilhar as informações com todos os adultos envolvidos, para que não hajam discrepâncias nas colocações para a criança.

CONCLUSÃO
Em algumas culturas existe uma resistência em falar abertamente sobre morte. Ninguém fala e nem discute de forma alguma sobre morte. Não gostam nem de usar a palavra morte. Utilizam-se de outras expressões para não ter que usar o termo morte. Com crianças, então, isso é totalmente proibido, diz-se “foi viajar”, “está com papai do céu”, “ virou uma estrela” e outros. Essa atitude reflete nossas supertições e nossos medos.
Morte é certamente uma palavra difícil para ser usada, mas não existe outra que expresse mais adequadamente e honestamente o acontecido. Morte é a consequência da vida. Se você vive, também um dia irá morrer, e ninguém é capaz de alterar essa equação.
Quando você conversar com criança sobre morte, lembre-se que crianças pensam em termos concretos. Portanto, o termo mais adequado é morreu, pois vai dar a precisão exata do que realmente aconteceu, evitando confundí-la.
Nagera (1970) após analisar uns relatórios, constatou que nas culturas estudadas quando um dos pais morre o sobrevivente provavelmente diz ao filho que o outro foi para o céu e ele conclui: “ Para os que são religiosos, esta informação está de acordo com a crença dos pais. Para muitos outros, porém, não é assim, de modo que desde o início há uma discrepância entre aquilo que é dito à criança e aquilo em que os pais acreditam. Uma menina de quatro anos que recebeu essa informação, ficou com raiva e chorou amargamente porque o pai não veio para sua festa de aniversário” (p.310).
Independente de religião, crenças e filosofias a respeito da vida e da morte, é importante que seja esclarecido que a pessoa morta não pode mais voltar, que não sabemos, exatamente, o que acontece com as pessoas quando se morre, que cada um acredita em algo , e você pode expor a sua crença, deixando-a livre para que ela possa, no futuro, escolher no que acreditar.
De acordo com Luce Des Aulniers: “O medo da morte è fundador da cultura”, e Maria Fernanda Vomero acrescenta que a partir do desejo que temos de perpetuidade é que se desenvolvem as instituições, as crenças, ciências, artes, técnicas e até mesmo as organizações políticas e econômicas, e isso é o que ela chama do lado vital da morte. Ou seja, o medo da morte nos pulsiona a viver, a constituir laços afetivos, construir coisas materiais, procriarmos e criarmos coisas que nos dê continuidade.
Anseio que esse texto venha ajudar aos adultos a compartilharem melhor o momento da morte com a criança, seja seu filho ou aluno. Nunca esquecer que a coisa mais importante que se pode fazer pela criança numa situação como a morte é ficar com ela, ser honesta e amá-la. É mostrar, através de atitudes, que a vida continua e que você estará por perto para oferecer-lhe segurança e amor.
Com relação a instituição educacional, o nosso desejo é que a escola não seja apenas um espaço de ‘transmissão’ de conhecimentos, mas um local onde as crianças tenham a oportunidade de se expressarem e elaborarem seus sentimentos. Local onde a criança possa expressar simbolicamente suas emoções, onde possa falar dos seus medos e inquietações. Local onde ela tenha a liberdade e o apoio para fazer os seus questionamentos sobre a vida, inclusive sobre a morte.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Luto: a dor de uma perda

Como superar a aflição que parece não ter fim

Existem poucas coisas certas na vida e uma delas é a morte. Essa certeza fica quase invisível à sensação de eternidade - tanto para nós quanto para aqueles que amamos. Mas a vida não funciona da forma que desejamos: o momento chega, nos pega de surpresa e nos derruba. Em algumas vezes o tombo é de tão alto que devasta uma vida inteira, cheia de planos e acontecimentos marcantes, trazendo consigo sensações de dor nunca antes sentidas. Foi o que aconteceu com duas mulheres, felizes, dedicadas aos filhos e maridos, cheias de projetos para aqueles que amavam. De uma hora para outra, foram surpreendidas pela morte.

Alice Lanalice, autora do livro O Perfume de Eliana, escrito em homenagem à filha, era uma mulher comum, em uma cidade comum, entre histórias comuns. No meio de sua vida um acontecimento mudou radicalmente seus pensamentos e atitudes. Era uma segunda-feira, 31 de janeiro de 2000. Alice estava no trabalho quando uma ligação estranha a fez despertar a angústia. Eliana deveria estar em uma reunião de trabalho importante, e ainda não chegara. Como havia dormido na casa do namorado, a primeira reação da mãe foi entrar em contato com a jovem. Ela tentou algumas vezes, mas ninguém atendia as chamadas, até que um homem desconhecido atendeu e desligou.
Mergulhada em diversos sentimentos, a autora tentou, com sucesso, falar com o namorado da filha, que não sabia de nada, pois ela já teria saído de sua casa. Naquele momento, um pingo de esperança se instalava em um coração desesperado. Mas, com o passar dos minutos, a triste notícia chegou. O irmão do namorado da filha disse ao telefone: "Não vou mentir; Eliana morreu." Eliana, a caminho para o trabalho, aguardava para entrar na Anhanguera, uma das rodovias paulistas de mais movimento. Um ônibus que não conseguiu frear se chocou com seu carro, empurrando-o para o centro da pista. Um caminhão vinha em sua direção e a batida foi fatal. Ela morreu no caminho para o hospital, aos 25 anos.
Anos depois, outra mulher saberia o que Alice sentira naquele momento: a educadora Patrícia M. perdeu o marido em julho de 2007. Patrícia e Renato (nome fictício) viviam felizes um casamento de cinco anos. Buscavam superar juntos os problemas: ele era alcoólatra e bebia constantemente. Mesmo buscando saída no Alcoólicos Anônimos (AA) e no Al-Anon, Renato não conseguia largar a bebida e percebia a dor que causava à esposa e ao enteado. "Quando estava sóbrio, ele tinha plena consciência de que o vício o afetava socialmente, psicologicamente, financeiramente, maritalmente, fazendo, assim, a família sofrer demais", afirma Patrícia.
Renato decidiu procurar uma clínica que prometia tratar o alcoolismo com três vacinas. Durante o tratamento, não podia beber e deveria tomar remédios fortes para ansiedade, a fim de controlar os desejos pelo álcool. Infelizmente, nada conseguiu deter a necessidade da bebida. Renato bebeu, mesmo usando os medicamentos e, ao buscar um táxi para voltar para casa, caiu e bateu a cabeça. Foi levado para o hospital imediatamente, mas faleceu.
Sentimentos pós-perda
Segundo o psicólogo Francisco Carlos Gomes dos Santos, especialista em atendimento a enlutados, o perfil de quem perde uma pessoa mistura aspectos de depressão, ansiedade, culpa, raiva e hostilidade, além de falta de prazer, solidão, agitação, fadiga e choro. Também ocorre baixa autoestima, desamparo, saudade, a procura pelo falecido, lentidão de pensamento, perda de apetite, distúrbio do sono, perda de energia e suscetibilidade a doenças.
A autora Alice Lanalice sentiu instantaneamente um turbilhão de sentimentos após o falecimento da filha. "Misturava incredulidade, desespero, esperança de que havia algum erro de informação." A angústia foi tão grande que, na ocasião, ela foi encontrada pelo marido aos prantos, deitada no chão e rodeada de colegas de trabalho. "Chorei todos os dias durante um ano e emagreci muito", afirma.
Depois da perda do marido, Patrícia apresentou alguns dos sintomas descritos por Santos. Em muitos momentos, se deparou com uma forte angústia lhe apertando o peito. "Sinto um nó na garganta que chega a sufocar e preciso chorar para aliviar." Além do medo de perder outras pessoas que ama, ela varia entre aceitação e revolta e busca refúgio no trabalho.
Tanto Alice quanto Patrícia sentiram forte culpa com as mortes. "Quando perdemos uma pessoa querida a gente sempre acha que não fez o suficiente", explica Patrícia. A dor de não ver mais quem amavam fez com que essas mulheres modificassem as rotinas e deixassem de fazer muitas coisas a que estavam acostumadas. No primeiro capítulo de O Perfume de Eliana, Alice escreve: "Éramos quatro. Sempre quatro. Quatro tigelas de sopa, quatro canecas de leite, quatro pratos na mesa, quatro ovos de Páscoa, quatro pedaços de pizza... Agora, um buraco constante. Em tudo o que faço, sinto a falta do 'mais um'. Mesmo juntos, nunca mais seremos quatro!".
Patrícia deixou de frequentar os lugares a que ia com o marido e busca em suas imagens um alento para a dor. "Coloquei várias fotografias dele no meu escritório e costumo olhar sempre para elas. Ouço músicas que ele gostava, mando rezar missas todos os meses e durmo exatamente no lugar da cama em que ele dormia."

A renovação de uma vida
Encontrar um recomeço depois que se perde alguma pessoa importante não é fácil. É preciso que algumas perguntas que, geralmente, aparecem, sejam respondidas, como "por que isso aconteceu?" e "por que aconteceu comigo?".
Uma das saídas encontradas por Alice e Patrícia foi a terapia. Alice freqüentou durante três anos após o acidente. Patrícia busca esse auxílio há um ano. Segundo Santos, esse pode ser um tratamento útil para quem não superou a dor. "O paciente geralmente tem muitas dúvidas em relação à morte. Ele precisa entender como ela foi ou não foi, se foi injusta, se ocorreu cedo ou tarde; entender os sentidos filosóficos da fatalidade-morte", explica o psicólogo.
Além da ajuda externa, Alice percebeu que era importante criar algo para ajudar quem dividia com ela esse sentimento. Foi então que criou a Casulo – Associação Brasileira de Apoio ao Luto –, e escreveu o livro O perfume de Eliana, publicado em 2001. Com o lema "Da sua dor a gente entende", a associação organiza reuniões que discutem o problema e grupos de auto-ajuda. "O que a Casulo procura fazer é apoiar, incentivar e criar condições para que cada enlutado refaça o projeto de uma nova vida."
Alice não se considera uma enlutada e acredita que conseguiu sublimar a dor. Para o psicólogo, quando se ultrapassa a fase do luto, inicia-se uma reconstrução da vida. "A pessoa passa a encontrar sentido na nova vida. Consegue amar as pessoas presentes, passa a aceitar a realidade da perda, enfrenta as emoções do pesar, adapta-se à vida sem a pessoa, encontra maneiras adequadas para lembrar o falecido, reconstroi os sistemas filosóficos abalados pela perda, além de sua identidade."
Patrícia também buscou outras maneiras para superar a dor. Procurou nos livros e na religião espírita uma maneira de entender melhor o processo de morte e perda. Mesmo assim, acredita que ainda não superou. Sua angústia da incerteza sobre a possibilidade de ver o marido algum dia, em outro lugar, a afeta constantemente. "Rezo por ele todos os dias e tento usar alguns passos do AA, apesar de não ser alcoólatra, mas pedindo forças para mais um dia na minha vida."


quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Pai quis assegurar a Eluana a concretização de um desejo calado havia 17 anos pelo silêncio do coma

Debora Diniz e Tatiana Lionço* - O Estado de S.Paulo

POLÊMICA - De protetora, família passou a homicida potencial da jovem
- Eluana Englaro sofreu um acidente de carro aos 21 anos e viveu 17 em coma sob cuidados médicos permanentes para se manter viva. Durante 12 anos, seu pai lutou na Justiça italiana em busca de autorização para deixá-la morrer. Segundo ele, essa era a vontade expressa de Eluana antes de sofrer o acidente. As últimas semanas foram de intensa controvérsia na sociedade italiana, em especial com a Igreja Católica, cuja posição era de radical oposição a deixá-la morrer. Um dos principais legados da história de Eluana foi ter acendido o debate em países católicos sobre os limites da medicalização e o direito de morrer.É um equívoco descrever a morte de Eluana como eutanásia. Eutanásia é um ato médico que provoca a morte de uma pessoa pelo uso de medicamentos, sendo a injeção de potássio o recurso mais comum. A pessoa não está agonizante ou em estado vegetativo, mas em estágios avançados de uma doença. Em geral, os casos de eutanásia ocorrem após a certeza de um diagnóstico de doença letal e degenerativa, mas em um momento em que a pessoa se encontra lúcida para a tomada de decisões. A eutanásia é proibida em quase todos os países, sendo a Holanda e a Bélgica raras exceções. Muitos casos de eutanásia na Holanda são de idosos que apresentaram os sintomas intermediários da doença de Alzheimer: são pessoas que vivem sob a certeza do prognóstico da demência total, mas ainda estão lúcidas para a tomada de decisão.Eluana não morreu por eutanásia médica. Simplesmente foi retirado de sua rotina de cuidados aquilo que a mantinha em sobrevida. Há quem defina esse processo como "eutanásia passiva". Na América Latina, a decisão da corte colombiana autorizando a eutanásia passiva em 1998 foi um marco no debate internacional. O adjetivo "passivo" indicaria que não se provoca diretamente a morte, apenas se retiram medicamentos, alimentos ou hidratação. Há uma expectativa moral de que a morte simplesmente tenha seguido seu curso natural, afastando-se o excesso de tecnologia do corpo agonizante. A fronteira entre eutanásia passiva e ativa é tênue, mas a diferenciação oferece conforto aos teólogos, médicos e enfermeiros envolvidos na tomada de decisão sobre a morte. É nessa redescrição moral que se entende a morte de Eluana como natural - foi dado a ela o direito de morrer.O avanço da tecnologia médica tornou a morte um fato indeterminado na vida de uma pessoa. É possível estender a sobrevida por longos períodos, e Eluana é um exemplo disso. Quase metade de sua existência foi vivida sob a vigilância de aparelhos. Se, por um lado, esse excesso de medicalização acende o tema do direito de morrer, por outro, também provoca o debate sobre o direito das famílias ao luto. O pai de Eluana representava esse segundo lado da questão. A família de Eluana foi forçada a viver uma melancolia prolongada, uma espera permanente e indefinida pela morte efetiva da filha. A morte foi suspensa pela tecnologia médica, mas não foi oferecida a alegria da recuperação. Por isso, associado ao direito de morrer de Eluana, estava o direito ao luto da família.

*Debora Diniz, antropóloga, e Tatiana Lionço, psicóloga, são pesquisadoras da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Resolução CFM Nº1805/2006

Resolução do CFM sobre terminalidade de vida

O Diário Oficial da União do último dia 28 de novembro de 2006 publicou (à pág. 169) a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre terminalidade da vida (veja a íntegra do documento abaixo). Desta forma, a Resolução e suas disposições e recomendações, aprovadas pelo plenário do CFM em 9 de novembro de 2006, entram em vigor plenamente.

De acordo com a Resolução, na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou seu representante legal.

A Resolução também trata das obrigações dos médicos e do direito do paciente de receber todos os cuidados necessários para alívio do sofrimento. Ela foi proposta pela Câmara Técnica sobre a Terminalidade da Vida composta pelo Conselho Federal de Medicina, Conselho Regional de Medicina de São Paulo e Sociedade Brasileira de Bioética.

Fonte: site do CFM (http://www.cfm.org.br/)

Anexos:
>> Resol CFM 1805-06A ética e os pacientes terminais

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Aspectos sociais dos comportamentos suicidas - Reflexões acerca de “Sobre o suicídio”, de Karl Marx

Aproveitando as discussões a respeito da situação da moça italiana, e considerando a tão em voga temática do suicídio, posto o texto referente a apresentação que fiz no II Congresso em Morte e Morrer, realizado em Brasília, em 2008. O texto é uma análise do livro "Sobre o Suicídio", de Karl Marx.

O suicídio não deve ser visto como um ato aleatório de alguém que não sabe como lidar com frustrações e situações estresse. Há um propósito definido, resultado de uma lógica inflexível e implacável que move a pessoa rumo a uma única resposta (Wang e Ramadam, 2004). A autodestruição pode ser vista, assim, como um modo de resolver um dilema, uma situação considerada intolerável. Cabe aos pesquisadores, clínicos, equipes de saúde, entre outros, então, solucionar este quebra-cabeça produtor de um intenso sofrimento.

Karl Marx escreveu, em 1846, um ensaio a partir das memórias de Jacques Peuchet, ex-arquivista policial e curioso a respeito dos inúmeros casos de suicídio ocorridos na França. Neste ensaio, Marx nos dá várias idéias a respeito do que levaria uma pessoa à autodestruição. O ponto de partida para suas reflexões é a relação entre o suicídio e a sociedade. Para ele,
“As doenças debilitantes, contra as quais a atual ciência é inócua e insuficiente, as falsas amizades, os amores traídos, os acessos de desânimo, os sofrimentos familiares, as rivalidades sufocantes, o desgosto de uma vida monótona, um entusiasmo frustrado e reprimido são seguramente razões de suicídio para pessoas de um meio social mais abastado, e até o próprio amor à vida, essa força enérgica que impulsiona a personalidade, é freqüentemente capaz de levar uma pessoa a livrar-se de uma existência detestável.” (2006, p. 24).

Este trecho do ensaio de Marx chama atenção para uma gama de fatores de natureza diversa que podem levar ao suicídio. Essas “razões” que para Marx explicam porquê uma pessoa é levada a acabar com sua própria vida, hoje são consideradas fatores de risco, os quais envolvem a associação entre atributos do indivíduo, grupo ou ambiente que potencializam a chance de se estabelecer uma condição relacionada ou não a um determinado tipo de doença. No caso do suicídio ou tentativa de suicídio, as chances aumentam de forma diretamente proporcional ao aumento dos fatores de risco presentes (Meleiro e Teng, 2004). Assim, podemos fazer um paralelo entre as “razões para o suicídio” de Marx e conhecidos fatores de risco de suicídio:
a) “Doenças debilitantes”: inúmeros estudos mostram as correlações entre doenças mentais e suicídio e tentativa de suicídio (OMS, 2000). A Organização Mundial da Saúde aponta distúrbios de personalidade, esquizofrenia, alcoolismo e outros distúrbios mentais, orgânicos ou não, como grupos diagnósticos com grande risco de suicídio.
b) “Falsas amizades”: estudos demonstram que pessoas que tentam suicídio possuem uma rede de apoio social escassa e a percebem como insatisfatória. A falta de uma rede de apoio social eficaz pode resultar no aumento dos níveis de angústia, depressão e de estresse (Gaspari e Botega, 2002).
c) “Amores traídos”: problemas amorosos, conflitos familiares e conjugais são comumente identificados como determinantes de um ato suicida (Grossi e Vansan, 2002).
d) “Desgosto de uma vida monótona, um entusiasmo frustrado e reprimido”: no caso de adultos jovens, dificuldades em lidar com as demandas dessa etapa do desenvolvimento podem surgir, seja pela falta de objetivos de vida, por manterem projetos irreais, por criarem dependência de relacionamentos interpessoais instáveis, por encontrarem pouco apoio nesses projetos, ou mesmo pela falta de um projeto de vida real e eficaz (Tavares e cols, 2004).
e) “Rivalidades sufocantes”: a literatura mostra que a relação entre dificuldades enfrentadas no trabalho, considerado um elemento identitário fundamental no mundo contemporâneo, e características da experiência atual do indivíduo podem gerar angústias, conflitos e sofrimentos que podem irromper em estados de crise (Tavares, 2004). As pessoas podem desacreditar em suas chances de obter sucesso e ascender no mundo de hoje, em que a competição, o individualismo e a exclusão prevalecem (Tavares e cols, 2004).
f) “Sofrimentos familiares”: estudos apontam características comuns em famílias de suicidas, principalmente a presença de dinâmicas familiares disfuncionais (Osvath, Vörös, e Fekete, 2004; Gutstein, 1991; Koopmans, 1995; Shagle e Barber, 1993).
g) “Acessos de desânimo”: a depressão é um fator de risco para o suicídio, sendo o diagnóstico mais comum em casos de suicídio completo (OMS, 2000). A depressão também é mais associada a suicídios femininos que masculinos.

Apesar da obra tratar, sobretudo, do sofrimento das classes mais abastadas, é a miséria, segundo Marx, a maior causa do suicídio: a miséria gera a luta social e traz o sofrimento para a sociedade capitalista. Assim, seria o caráter capitalista da sociedade o gerador de tantos suicídios, o que leva Marx a questionar, justamente, o papel da sociedade no sofrimento do indivíduo:
“Que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões; em que se pode ser tomado por um desejo implacável de matar a si mesmo, sem que ninguém possa prevê-lo? Tal sociedade não é uma sociedade; ela é, como diz Rousseau, uma selva, habitada por feras selvagens.” (idem, p.28)

Marx considera que somente com uma reforma da ordem social poderiam ser feitas mudanças capazes de prevenir suicídios. Para ele, o suicídio é mais um entre uma infinidade de sintomas decorrentes da luta social, um exemplo da tirania familiar que não foi eliminada pela Revolução Francesa.

Ao fim do ensaio, Marx conclui que “na ausência de algo melhor, o suicídio é o último recurso contra os males da vida privada.” (p.48). Em resumo, Marx traz a idéia da sociedade como uma instância maior causadora de sofrimento, passando pelas rígidas normas impostas por esta à família, até chegar às características individuais, às idiossincrasias e vivências de cada um, que poderiam levar ao suicídio, visto pelo indivíduo como única saída desses perversos e angustiantes dilemas.

A obra de Marx nos mostra que considerar apenas fatores individuais como riscos e causas do suicídio é esquecer que este vive em uma família dentro de uma sociedade, seja ela qual for. Ignorar os elementos interacionais relacionados aos comportamentos suicidas limita qualquer trabalho de prevenção ao suicídio, que devem também considerar como fatores de risco a possível toxidade das relações familiares e das pressões sociais e culturais.

Referências bibliográficas

Gaspari, V.P.P. & Botega, N.J. (2002). Rede de apoio social e tentativa de suicídio. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 51 (4), 233-240.

Grossi, R. & Vansan, G.A. (2002) Mortalidade pos suicídio no município de Maringá (PR). Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 51 (2), 101-111.

Gutstein, S.E. (1991). Suicídio de adolescentes: a perda da reconciliação. In: Walsh, F., & McGoldrick, M. (1991). Morte na família: Sobrevivendo às perdas. (C.O Dornelles, Trad). Porto Alegre: Artes Médicas.

Koopmans, M. (1995). A case of family dysfunction and teenage suicide attempt: applicability of a family systems paradigm. Adolescence, 30, 87-94.

Marx, K. (2006). Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo Editorial.

Meleiro, A.M.A.S. & Teng, C.T. (2004). Fatores de risco de suicídio. In: Meleiro, A.M.A.S., Teng, C.T. & Wang, Y.P. (org). Suicídio: estudos fundamentais (pp. 109-132). São Paulo: Segmento Farma.

Nunes, M.F. (2007). Família e comportamento suicida: um estudo exploratório de dinâmicas familiares. Dissertação de mestrado

OMS. Preventing suicide: a resource for primary health care workers. Genebra: 2000. Disponível em http://www.who.int/mental_health/media/en/59.pdf

Osvath, P., Vörös, V. e Fekete, S. (2004). Life events and psychopatology in a group of suicide attempters. Psychopathology, 37, 1, 36-40.

Shagle, S., Barber, B.K. (1993). Effects of family, marital, and parent-child conflict on adolescent self-derogation and suicidal ideation. Journal of Marriage and the Family, 55, 4, 964-974.

Tavares, M. (2004). A clínica na confluência da história pessoal e profissional. In: Diniz, G., Vasques-Menezes, I., Lima, M.E.A. & Codo, W. (orgs). O trabalho enlouquece? Um encontro entre a clínica e o trabalho. Petrópolis: Editora Vozes.

Tavares, M., Montenegro, B. & Prieto, D. (2004). Modelos de prevenção do suicídio: princípios e estratégias. In: Maluschke, M. Bucher-Maluschke, J.S.N.F. & Hermanns, K. (orgs.). Direitos humanos e violência: desafios da ciência e da prática (pp. 231-258). Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer.

Wang, Y.P. & Ramadam, Z.B.A. (2004). Aspectos psicológicos do suicídio. In: Meleiro, A.M.A.S., Teng, C.T. & Wang, Y.P. (org). Suicídio: estudos fundamentais (pp. 79-96). São Paulo: Segmento Farma.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O tempo vence todas as nossas trapaças

Por Ruth de Aquino





Benjamin Button é um filme implacável de David Fincher. Não percebi que haviam se passado quase três horas quando as luzes se acenderam. As lágrimas escorriam como se tivessem vida própria. Acaba de receber 13 indicações ao Oscar. É uma fábula que nos transporta para nossos labirintos e encruzilhadas. Para os amores, as perdas, a beleza, o vigor, a decadência e a memória. O protagonista é o tempo. Vence todas as trapaças.
O curioso caso de Benjamin Button conta a história de um bebê que nasce velho e encarquilhado, com artrite e catarata. Parece um monstrinho. A mãe morre no parto. O pai o abandona na escada de um asilo de idosos. O bebê, branco, com aparência de mais de 80 anos, é adotado pela dona do asilo, uma jovem negra que não consegue engravidar. Contra todos os prognósticos médicos, Benjamin (Brad Pitt) sobrevive, cresce, rejuvenesce e vive a vida ao contrário. Para quem almeja parecer cada vez mais jovem – e essa é uma síndrome dos nossos tempos – , a vida de Benjamin Button pode dar a impressão de ser fascinante. Mas ele acaba de fraldas, novamente bebê e dependente, com a memória zerada dos recém-nascidos, como se nada tivesse vivido. Benjamin acaba rosado, mas, no íntimo, igual a tantos idosos, que esquecem o passado, não pensam mais no futuro e quase perderam a noção do presente.
Dito assim, parece um filme assustador. Não é. Li resenhas que diziam que O curioso caso de Benjamin Button retrata a impossibilidade da paixão eterna. Tive a impressão oposta. A maior beleza do roteiro, e talvez sua maior fantasia, é exatamente acreditar na paixão eterna. A que desafia desencontros e expectativas, transcende diferenças de idade, burla todos os códigos e ignora ressentimentos ou abandonos. O amor verdadeiro existe para sempre, não necessariamente sob o mesmo teto e de acordo com as convenções, é o que nos ensina o casal Benjamin e Daisy, Brad Pitt e Cate Blanchett. Ele numa atuação impecável. O rosto carcomido da primeira metade do filme é de Brad Pitt, mas o corpo não. Ela, ruiva de olhos azuis, mais bela que jamais. A língua inglesa tem um adjetivo muito apropriado para Cate nesse filme: “mesmerizing”. Uma bailarina que fascina e hipnotiza, pelos movimentos e traços perfeitos.
A maior beleza do filme sobre o caso de Benjamin Button é a paixão que passa por cima de tudo
Na verdade, é inútil contar a história, ou onde e quando ela se passa. Tampouco importa. O roteiro é universal, o tempo é psicológico e embaralha nossas convicções com humor e crueldade. Cada um de nós reagirá de um jeito. Dependerá da idade, da experiência e do que se espera da aventura da vida. Os muito jovens na plateia não pareciam comovidos – estavam ansiosos para ver logo o momento do Brad jovem, lindo e sexy, transando loucamente. Deve existir uma idade mínima para apreciar esse filme em suas nuances, e ela não é 18 anos. Na juventude, o tempo é sempre infinito e somos imortais.
O roteiro do filme, de Eric Roth, é uma adaptação livre do conto homônimo do americano Francis Scott Fitzgerald, publicado em 1922. Fitzgerald morreu em 1940, alcoólatra, aos 44 anos. Sua mulher, Zelda, estava internada por esquizofrenia num sanatório. O conto foi escrito quando Fitzgerald tinha só 25 anos – e uma percepção aguda dos dramas da velhice. A ideia aparentemente nasceu de uma citação do romancista Mark Twain (1835-1910): “A vida seria infinitamente mais feliz se pudéssemos nascer aos 80 anos e gradualmente chegar aos 18”. Twain também dizia: “Sou velho e já passei por muitas dificuldades, mas a maioria delas nunca existiu”.
Algumas frases do filme martelam a alma. “Somos predestinados a perder as pessoas que amamos. De que outra maneira saberíamos como são importantes para nós?” “Nunca se sabe o que nos espera.” “Nossas vidas são definidas pelas oportunidades, mesmo aquelas que perdemos.” “Espero que você leve uma vida da qual se orgulhe. Ou que tenha força para começar tudo de novo.” Tudo é passageiro e do fim não se escapa. O filme nos lembra a tela Lixeiro filósofo, de Roberto Magalhães. Nela, um papel recolhido na rua diz: “Tudo que começa acaba”.



http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/1,,EMI24871-15230,00.html

SUICÍDIO, SUICÍDIO ASSISTIDO E DOENÇA CLÍNICA

A doença física é uma importante motivação para o suicídio e este conceito já é conhecido de longa data. Ele é um fator significativo em cerca de 25% dos suicídios, aumentando em conjunto com o fator idade: cerca de 50% dos suicídios em pacientes com mais de 50 anos e 70% dos suicídios em maiores de 70 anos estão relacionados com o sofrimento por doenças físicas (Herbert Hendin, 1999). As condições clínicas associadas a altas taxas de suicídio incluem o câncer, a AIDS, a úlcera péptica, a coréia de Huntington, o traumatismo craniano, a insuficiência renal e a lesão da medula espinhal.A solicitação de morte geralmente vem de pacientes que estão desesperados, independente de estarem com doença física. Apoiar ou negar esta solicitação não é uma resposta adequada. Uma avaliação psiquiátrica abrangente que deve ser feita em todos os pacientes, deve incluir questionamentos do porquê de tanto desespero e contra-atacar para proporcionar alívio para eles. Este questionamento deve incluir o histórico do contato do paciente com a morte de familiares e amigos, de crises do passado e de como elas foram contornadas e, obviamente, um histórico pregresso de depressão, assim como de tentativas de suicídio.A depressão, a ansiedade e a ambivalência sobre a morte caracterizam tanto pacientes enfermos que tentam o suicídio como aqueles que solicitam suicídio assistido. Quando as origens psicológicas e físicas do desespero dos pedidos de suicídio assistido são endereçadas, o desejo de morte diminui e os pacientes ficam, geralmente, gratos pelo tempo que lhes resta.
A melhora dos cuidados psiquiátricos e médicos para aqueles que estão com doença oferece possibilidades significativas para a prevenção do suicídio.
Fonte: Hendin H-J. Clin. Psychiatry, 1999; 60 (2): 46-50

Suicídio assistido?

Pai de italiana em estado vegetativo pede silêncio nos últimos dias da filha

Em Roma (Itália)
O pai de Eluana Englaro, a italiana de 38 anos em estado vegetativo desde 1992 que espera em um clínica que seja retirada a alimentação e a hidratação assistida que a mantém com vida, pediu silêncio e respeito nos últimos dias da filha.
Governo italiano verifica idoneidade do centro que recebeu Eluana Englaro. Em declarações publicadas hoje pelo jornal "La Repubblica", Giuseppe Englaro pediu que "se coloque uma cortina" ao redor da cama da filha.Giuseppe Englaro disse que não voltará a fazer declarações até que "termine tudo".A família Englaro pediu ontem, através de seu advogado, Vittorio Angiolini, que "o episódio final desta tragédia seja concluído com silêncio" e anunciou que não serão emitidos comunicados sobre o estado de Eluana.O silêncio e a discrição cercaram a primeira noite de Eluana na clínica Quiete, em Udine, no noroeste da Itália, onde, nos próximos dias, uma equipe de voluntários retirará progressivamente a alimentação e a hidratação da italiana.Os médicos, enfermeiros e responsáveis da clínica mantêm um silêncio total sobre o caso, respeitando o pedido da família, e policiais vigiam tanto o lado de fora do centro médico quanto a porta do quarto de Eluana, para garantir a privacidade.Durante a noite, um grupo de membros do Partido Radical e da associação Luca Coscioni fez uma manifestação diante da clínica Quiete, para pedir ao Governo que aprove uma lei sobre o testamento vital.Nestes dias, o centro médico de Udine deve se transformar no cenário da profunda divisão do país sobre o caso de Eluana, com contínuas manifestações de grupos a favor ou contra o "direito de morrer"

Fonte: http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2009/02/04/ult1766u29633.jhtm

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Pensamentos

Seneca

"Durante toda a vida devemos continuar a aprender a viver"


Erick From

"Durante toda a vida devemos continuar a aprender a morrer"

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Sobre Solaris

Solaris,


Imagine um planeta descoberto quase por acaso, um planeta que possui um imenso oceano, não se divisa terra firme. Mas um oceano complexo, vivo, dotado de inteligência. Esse é o desafio que Stanislaw Lem, escritor polonês, propõe no seu livro de 1961.

Não há meio termo, ou se odeia ou se admira Solaris. Na verdade, trata-se de uma obra de ficção que nos remete a um profundo questionamento da nossa própria psique.
O filme foi produzido pelo cineasta russo Andrei Tarkovski, estreou em 13 de maio de 1972 no Festival de Cannes, no qual foi agraciado com o Prêmio Especial do Júri. Em 2002, foi realizada, nos Estados Unidos, uma outra versão, dirigida por Steven Soderbergh, que reacendeu o interesse pelo texto de Lem.
Para analisar as implicações psicológicas do filme, buscamos o ensaio do doutor Rafael Raffaelli que remete a uma interpretação de Carl Gustav Jung. O eixo teórico reside na inter-relação entre episteme (conhecimento) e processo de individuação (autoconhecimento), com ênfase na questão do arquétipo do si-mesmo, tal como concebido na perspectiva junguiana. Três questões são trabalhadas: a) Quais as referências históricas e filosóficas presentes na narrativa? b) Como os personagens e as situações narradas podem ser interpretados a partir das formulações teóricas junguianas? e c) Como se conectam nessa interpretação o conhecimento e o autoconhecimento?
A trama da obra gira em torno aos estranhos fenômenos que acontecem na estação espacial Solaris. Kelvin é enviado à estação para averiguar esses fenômenos e avaliar a conveniência do seu abandono. Já na estação, fica sabendo que um dos três cientistas-tripulantes se suicidou (seu amigo Gibarian); os outros dois (Snout e Sartorius) agem de modo suspeito. A causa dessa situação são as criaturas-psi – corporificações de memórias ou desejos – que surgem inopinadamente aos tripulantes durante o sono. Logo após sua chegada, Kelvin entra em contato com a materialização de Hari, sua ex-mulher que se suicidara na Terra.
O centro da narrativa é o oceano, um ser ininteligível que teima na sua solidão, com o qual se procura obter contato a gerações, sem sucesso. O oceano recobre inteiramente o planeta Solaris e acima dele orbita a estação espacial homônima habitada por alguns cientistas ligados à "Solarística", isto é, ao ramo da Ciência dedicado unicamente ao estudo de Solaris. O oceano é considerado uma forma primitiva de evolução para os biólogos, mas para os físicos, ele é visto como uma estrutura orgânica complexa, capaz de exercer influência sobre a órbita do planeta.
Ao contrário dos organismos terrestres, ele não levara centenas de milhões de anos para adaptar-se ao meio ambiente – culminando nos primeiros representantes de uma espécie dotada de razão –, mas dominara-o imediatamente.
Podemos pensar no oceano como uma metáfora do inconsciente ou, numa formulação mais precisa, como o si-mesmo, o centro da psique na teoria junguiana, "aquela indescritível totalidade (ou inteireza) do homem que não pode ser visualizada, mas que é indispensável como conceito intuitivo" . A sua evolução lembra a espontaneidade do surgimento dos arquétipos, que se apresentam sob um caráter numinoso, "que poderíamos definir como 'espiritual', para não dizer 'mágico'"
Sob a superfície do oceano nada pode ser observado, embora a função inconsciente continue atuando sem que o ego perceba. O ego fica restrito à visão da superfície, captando certos sinais – como nos sonhos ou nos sintomas – sem que possa decifrá-los.
O texto da novela sublinha o dilema de uma ciência ("Solarística"), que não pode aceitar a existência de fenômenos que superem a sua capacidade de compreensão numa determinada época e, dessa forma, o excesso é tratado como mito. A resposta racional ao desconhecido é a especialização do saber. Assim, reconhecida a diversidade do mundo e sua infinita complexidade, resta dividir o conhecimento em áreas praticamente estanques –tentando cada qual sua verdade particular e carente de síntese –, nas quais os enigmas tornam-se problemas científicos, sem que com isso sejam solucionados.
A falta de um sentido de comunhão com o cosmos, a incapacidade humana de se ver como parte integrante da Natureza, impossibilita a compreensão de que aquilo que procuramos fora, no mundo exterior – isto é, no planeta Solaris –, é um reflexo do Homem. O si-mesmo, representação última do ser, é tanto fonte da humanidade como do mundo, pois ultrapassa as fronteiras do psíquico: "A individuação não exclui o mundo; pelo contrário, o engloba".
O oceano seria, assim, a representação do arquétipo central, de tudo de misterioso e enigmático que encontramos nas entranhas de nosso próprio ser e no mundo, sobre o qual nada de positivo pode ser dito.
Muitas vezes, temos a impressão de que a psique pessoal galopa em torno desse ponto central como um animal assustado, ao mesmo tempo, fascinado e temeroso; embora fuja constantemente, cada vez mais se aproxima do centro. Não quero dar ensejos a mal-entendidos, nem quero que pensem que sei algo a respeito da natureza do "centro", pois este é simplesmente incognoscível. E a compreensão do si-mesmo ocorre pelo simbolismo que ele elicia, transformando determinadas manifestações culturais e certos objetos – ou imagens (formas) deles derivadas – em representações da totalidade.
O oceano – o centro da personalidade – é tomado ora como um sábio, que despreza o contato, ora como um autista, incapaz de se comunicar . Há aqueles que encaram o Homem como uma tabula rasa. Há aqueles que negam o inconsciente. Há aqueles que crêem que do íntimo do Homem só brote a violência e o sexo. Inversamente, há também aqueles que, endeusando e mitificando o si-mesmo, buscam estabelecer o contato com o centro da personalidade através do misticismo, dos regimes alimentares, dos exercícios físicos, da submissão a um guru ou a uma seita – "tudo isto porque não se consegue mais conviver consigo mesmo e porque falta fé em que algo de útil possa brotar de nossa própria alma" (Jung, 1994, p. 109). Tanto o realismo como o misticismo falham em procurar nos mecanismos e processos exteriores a chave para o conhecimento do si-mesmo.
As categorias de espaço, tempo e causalidade não se aplicam ao oceano, que existiria eternamente igual a si-mesmo, do mesmo modo que o inconsciente, que existe de forma "transespacial" e "transtemporal", correspondendo àquilo que se qualifica simbolicamente como "eternidade". Mas a dúvida fundamental da "Solarística" era saber se o oceano era consciente e se era possível comunicar-se com ele. Poder-se-ia falar em "pensamento" em relação às atividades do oceano? Lem descreve essas atividades como sendo uma "autometamorfose ontológica", contudo, "é uma montanha somente uma imensa pedra? É um planeta uma enorme montanha?" .
Primeiramente, pensou-se em estabelecer contato através de uma curiosa propriedade do oceano, sua propensão à imitação de objetos, expressa nas "formações mimóides que poderia ser entendida como uma tendência à repetição inconsciente. Essa característica do oceano – sua suposta gratuidade somada à complexidade de configuração – é um símile do processo inconsciente, no qual as imagens são 'copiadas' e reelaboradas gerando figuras de pesadelo, aparentemente destituídas de sentido.
Com o fracasso da análise dos "mimóides", a única indicação de contato eram os estranhos fenômenos que ocorriam com os tripulantes, à sua revelia, e que ameaçavam levar a estação orbital ao colapso. A "Solarística" chega a um impasse após anos de pesquisa infrutífera e necessita do concurso de um psicólogo (Kelvin) para discriminar o delírio da realidade, a alucinação da percepção verdadeira, socialmente estabelecida, e avaliar a conveniência da continuidade dos trabalhos de pesquisa na estação. Mas ele também se confronta com seus próprios complexos, minando a persona racionalista do psicólogo que analisa os delírios alheios.
O filme enfatiza a incapacidade do relato exato da percepção, como no deslocamento temporal do depoimento do piloto à comissão científica – do meio para o início da narrativa –, que visa a salientar esse aspecto. Percepções que não se conformam com a normalidade são consideradas alucinações. As imagens conscientes são a expressão cognitiva do indivíduo ou da coletividade que a produz e sua ruptura abre uma fenda, através da qual pode se expressar o símbolo, acercando-se do inconsciente. O descompasso entre a percepção do piloto (Burton) e a racionalidade fria de Kelvin coloca os limites da ação do próprio personagem. O psicólogo sabe distinguir o que é realidade e o que é alucinação? Em qual sentido?
No entanto, esse psicólogo, que se pretende racional, é colocado em meio às suas próprias angústias, sendo confrontado com a cópia feita de neutrinos ("criatura-psi") de Hari. Culpa reprimida surge como imagem irreprimível. Um tormento de consciência em que só a aceitação da limitação da racionalidade absolutista permite a Kelvin reconsiderar sua própria existência e sua relação com o Outro.
Pois nenhum conhecimento real advém sem que seja acompanhado de um autoconhecimento correspondente. Olhar para o oceano como um objeto a ser analisado não o torna capaz de penetrar nas entranhas da criação de seus próprios pensamentos desconexos, visto que, debaixo do feixe aparentemente monolítico da consciência vígil, residem idéias divergentes, contraditórias, angustiadas, esperando pacientemente a hora do sono, para poderem ser representadas em imagens oníricas.
O oceano presenteia o psicólogo com a consciência de sua própria elaboração psíquica – oriunda das esferas desejantes dos complexos – que, agindo no âmago de seu inconsciente, gera os fantasmas presentes na sua sombra. E essa purgação, finalmente, abre o caminho para a espiritualidade: "Às vezes, a consciência se acha na proximidade dos processos instintivos, e cai sob sua influência; outras vezes, ela se aproxima do outro extremo onde o espírito predomina" .
Quando Kelvin é "visitado" por suas memórias culposas, sua primeira reação é encarar o fato da perspectiva do ego. "Estarei ficando louco?" – é a pergunta que se faz. E, aparentemente, a única solução é estabelecer parâmetros de realidade, de realidade controlada, realidade científica. Mas ele dá-se conta da impossibilidade de controlar seus próprios pensamentos.
Mesmo enquanto sonhamos, quando estamos em perfeita saúde, conversamos com estranhos, fazemos-lhes perguntas e ouvimos suas respostas. Além disso, embora nossos interlocutores sejam, na realidade, criações de nossa própria atividade psíquica, desenvolvidas por um processo pseudo-independente, não sabemos que palavras sairão de seus lábios até que falem conosco. E, no entanto, essas palavras são formuladas por uma parte separada da nossa própria mente; por conseguinte, devemos estar conscientes delas no exato momento em que as arquitetamos a fim de colocá-las na boca de seres imaginários.
O que é sonho, o que é realidade? Kelvin mergulha nessa dúvida existencial, quando sua percepção já não dá conta de separá-los.
Entretanto, o processo de autoconhecimento ou de individuação só evolui quando se aceita a incapacidade do ego de controlar o todo da personalidade, superando os limites do inconsciente pessoal: "O si-mesmo, em sua totalidade, se situa além dos limites pessoais"
Desse modo, o ego deve superar os complexos presentes em seu inconsciente pessoal ou sombra e estabelecer um contato com as imagens arquetípicas através de sua anima ou animus. O contato com o si-mesmo é guiado pelas personalidades-mana4 ou iniciáticas: o herói, a sacerdotisa, o velho sábio, a feiticeira, entre outras representações. Essas personalidades-mana é que estabelecem o eixo ego–si-mesmo, quer dizer, a abertura consciente para o centro da personalidade. As criaturas-psi refletem, inicialmente, os complexos do inconsciente pessoal dos astronautas em Solaris, mas já contêm, in nuce, o princípio da transmutação psíquica, pois podem metamorfosear-se em personalidades-mana, possibilitando o contato entre o ego e o si-mesmo. Nessa perspectiva, Hari representa, primeiramente, a culpa reprimida na sombra e, depois, assume o papel de anima positiva ou caráter de transformação positivo para a personalidade de Kelvin.
Kelvin toma contato com seu lado negro e torna-se mais humano, ao se perceber falível e fragilizado. Kelvin, que a princípio parecia ser um personagem limitado e medíocre, revela-se possuído por "tabus" profundamente humanos, que o tornam organicamente incapaz de desobedecer à voz da sua própria consciência e de se esquivar ao pesado fardo da responsabilidade pela sua vida e pela dos outros. Kelvin é, assim, obrigado a reconhecer os sintomas a que está sujeito como resultado da atuação de seus complexos e os limites da racionalidade na psicologia, "cujo objeto exorbita os dois aspectos que nos são transmitidos através da percepção sensorial e do pensamento" .
E toda a pesquisa, toda exploração é também pesquisa e exploração do próprio self. Para onde quer que vamos – ao mais longínquo rincão do espaço – estamos sempre em confronto com nossos "fantasmas", que viajam conosco, espelhando aquilo que não queremos ver: "Não temos necessidade de outros mundos. Precisamos de espelhos" .
O Homem busca a fonte da luz, a episteme, mas onde existe luz, existirá também a sombra: "A luz e a sombra formam uma unidade paradoxal no si-mesmo empírico". Assim, os cientistas de Solaris começam a tomar consciência de que seus métodos intrusivos de investigação apresentam efeitos inesperados.
Mas Kelvin, realista convicto, tenta livrar-se, fisicamente, de seus problemas, como quem faz uma lobotomia, realizando um "divórcio por ejeção" enviando a réplica de sua finada esposa num foguete rumo ao nada. Mas essa "cura" não durará muito. A tentativa de anular o mistério, de negar a transcendência do fenômeno, provoca uma supressão do sintoma, mas o preço é o recalque dos aspectos mais essenciais da personalidade. Mas em Solaris o reprimido sempre retorna.
O oceano é, sem dúvida, a origem das criaturas-psi. Mas, frente à impossibilidade de se livrarem dos incômodos visitantes, os cientistas debatem inconclusivamente sobre o seu significado, concordando apenas que "são somente projeções materializadas por nossos cérebros, baseadas em um dado indivíduo" .
Quanto mais Kelvin mergulha nessas indagações, mais sua consciência se obnubila, retornando ao estado sonambúlico no qual se misturam a alucinação e a realidade. Ele dá-se conta, enfim, de sua incapacidade de solucionar o enigma, quando escuta a gravação que seu amigo Gibarian havia deixado antes de se suicidar.
Frente à impossibilidade de fazer cessarem as aparições de Hari, Kelvin conforma-se com seu destino e deixa de negá-la. Ao contrário, passa a amá-la, mesmo sabendo que ela provém do oceano, que é uma cópia feita de neutrinos, quer dizer, que é uma imagem provinda do centro de sua personalidade. Hari, contaminada pela dúvida, tenta até o suicídio, mas a imagem do mensageiro não tem o poder de autodestruir-se. Ganhando estatura humana, mesmo não sendo biologicamente humana, filosofa sobre sua composição e sua existência: "Ouvi o bastante para compreender que não sou um ser humano, sou apenas um instrumento".
Finalmente, numa última tentativa, os cientistas resolvem enviar em direção ao oceano os encefalogramas de cada um deles. É, nesse momento, que o psicólogo reconhece o dinamismo autônomo da psique e trava contato, então, com os aspectos ameaçadores que o encontro com o si-mesmo propicia. No entanto, superados os complexos, as criaturas-psi deixam de ser lembranças malquistas e são reconhecidas como componentes de sua própria personalidade e, assim, perdem razão de ser e desaparecem. Realizada a ligação entre o eu e o si-mesmo, cumprida a sua função de personalidade-mana ou iniciatória, os fantasmas se dissolvem, e o oceano – o self – pode ser reconhecido como o centro da personalidade.
No filme de Tarkovski – num movimento de câmera em zoom-out – surgem nesse momento ilhas na superfície do oceano, indicando um espaço possível da consciência, um locus propício a toda recordação, onde o personagem pode voltar ao tempo idílico de um passado morto. Numa dessas ilhas, Kelvin reencontra a datcha do início do filme, a casa ancestral – que tem raízes no inconsciente coletivo, pois fora projetada segundo o modelo da casa de seu bisavô. Agora é inverno, sua vida completa o ciclo. Seu pai, abandonado por ele na Terra, está dentro da casa e a chuva o molha. Simbolicamente, é a união da vida – a Grande Mãe – com a imago paterna, manifestação da totalidade. O psicólogo que negava o passado, conscientiza-se da inversão do momento e ajoelha-se para pedir o perdão do pai. Mas, ao recuperar o seu passado, ele o percebe ilusório, pois tudo isso ocorre numa condensação circunstancial do oceano – uma nesga de consciência que se diferenciou do inconsciente primordial.
A mensagem final do oceano é a da impermanência de toda representação, de toda materialidade representada, colocando em seu lugar a consciência da mortalidade e da dissolução.
No entendimento do diretor russo, a obra possui um claro significado: Solaris tratava de pessoas perdidas no Cosmo e obrigadas, querendo ou não, a adquirir e dominar mais uma porção de conhecimento. A ânsia infinita do homem por conhecimento, que lhe foi dada gratuitamente, é uma fonte de grande tensão, pois traz consigo ansiedade constante, sofrimento, pesar e desilusão, já que a verdade última nunca pode ser conhecida.
O conhecimento de que se trata não é o conhecimento técnico e dirigido a controlar o mundo externo, mas o autoconhecimento que propicia uma expansão da consciência.
Além disso, foi dada uma consciência ao homem, o que significa que ele é atormentado quando suas ações infringem a lei moral, e, nesse sentido, até mesmo a consciência envolve um elemento de tragédia. Os personagens de Solaris eram atormentados por desilusões, e a saída que lhes oferecemos era demasiado ilusória. Baseava-se em sonhos, na oportunidade de reconhecer as próprias raízes – aquelas raízes que, para sempre, ligam o homem à Terra onde nasceu.
Concluindo, tanto o texto de Lem como as imagens de Tarkovski possibilitam uma leitura de feitio junguiano, pois a temática central trata das limitações da cognição e sua inter-relação com o desenvolvimento da personalidade, fazendo referência ao inefável da experiência humana e à sua dimensão espiritual. Dessa forma, o conceito de si-mesmo – enquanto centro da personalidade e abarcando os seus aspectos conscientes e inconscientes – nos permitiria compreender a metáfora do oceano, pois, como vivência transcendente e ponto culminante do processo de individuação, ele não pode ser adequadamente descrito em palavras e o contato com o ego está obstaculizado pelos complexos, tal como o oceano é representado na narrativa.7
É através do autoconhecimento, isto é, do desenvolvimento da personalidade no processo de individuação, que esses complexos do inconsciente pessoal são dissolvidos, abrindo caminho para o reconhecimento da espiritualidade humana e da sua inserção última no cosmos atemporal que subsiste em cada sujeito.
Sem autoconhecimento, todo saber pode tornar-se deletério. Não compreenderemos de fato, algo "fora" de nós, que não esteja em relação ao nosso ser, à nossa própria dimensão íntima. Assim, postulada a impossibilidade de serem eliminadas as "considerações antropocêntricas" na Ciência, Solaris só pode ser efetivamente compreendido inserindo-se na vivência de quem o tenta compreender.

Baseado no texto de Rafael Raffaelli
Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Endereço para correspondência: Rua Aracuã, 351, Pantanal, Florianópolis, SC.CEP 88040-310. Tel/Fax: (48) 233-3247.
Endereço eletrônico: raraffa@aol.com
Universidade Federal de Santa Catarina

A Morte Não Irá Se Impor

Poesia de Dylan Thomas

Traduzido por Marcelo Fernandes

No filme de 2002, Solaris, o personagem Kelvin lê uma poesia enquanto conversa com sua “esposa”. A poesia é a seguinte:

A morte não irá se impor
Quando já nus os mortos cuja ossada
Se une a quem vai no vento ou sobre nada
Ao luar ocidental não forem nada,
Estrelas brilharão em seu redor;
Mesmo os loucos, ficarão sãos
Mesmo os que sob o fundo do mar estão
irão levantar-se novamente
Mesmo os perdidos por falta de amor, irão se redimir
E a morte não irá se impor.

A morte não irá se impor.
Nem contra aqueles destroçados no mar
Nem contra aqueles que foram absorvidos pelo mar sombrio
Mesmo aqueles cansados de trabalhar
Sofrendo nas mãos das tempestades
Nem contra esses a morte irá se impor
Mesmo que somente sobre a fé
E contra todas as evidências
Vem a desgraça de cima a baixo
Mesmo assim a morte não irá se impor

A morte não irá se impor.
Mesmo não ouvindo mais as gaivotas a cantar
Ou rebentando costa afora o mar
Mas onde já floriu se ora ao azar
Da chuva nem há flor, mesmo se for
Cinzas às cinzas tudo que era
Cada feição deles aflora cinzelada ao sol
Enquanto houver sol numa flor
Enquanto houver um pouco de esperança
A morte não irá se impor.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Oncologistas se sentem despreparados para lidar com a morte.


Estudo da psicóloga Lílian Cláudia Ulian Junqueira, desenvolvido na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, revelou que médicos oncologistas sentem a falta de abordagem das várias dimensões do ser humano no ensino de graduação. O estudo aponta que os médicos, apesar da marca positivista na formação, já enxergam além dos aspectos orgânicos do paciente. “Além da formação acadêmica, o profissional precisa entender a própria finitude para poder olhar as várias dimensões do paciente que vivencia sua terminalidade”, diz a pesquisadora.
Na pesquisa, orientada pelo professor Manoel Antônio dos Santos, da FFCLRP, Lílian entrevistou oito oncologistas. Para a coleta e análise dos dados utilizou o método fenomenológico, que se propõe a ir à essência das coisas, valorizando para tanto a descrição que cada participante do estudo oferece de suas vivências. Os resultados revelaram que os médicos têm uma abertura para a compreensão da experiência religiosa do paciente. No entanto, o fazem com muita dificuldade e ambigüidade quanto às condutas a serem adotadas, o que os faz transitar entre o cuidar autêntico e o inautêntico.
“Apareceram momentos em que eles se sentiram desconfortáveis ou mesmo irritados, por exemplo, quando o tratamento é preterido pelo paciente, que o coloca em segundo plano, justamente na hora em que se esperava adesão à terapêutica instituída. Nesses casos, as possibilidades de cura são delegadas a Deus. Nessa hora, o profissional se sente impotente e destituído de importância”, conta Lílian. “Em outros momentos, eles perceberam que o paciente necessita do movimento de se `religar` com o transcendental, que a religiosidade propõe, lembrando aqui da origem etimológica do termo religião”.
De acordo com a psicóloga, os médicos contam que respeitam as crenças dos pacientes porque sabem que, com isso, conseguirão se aproximar deles e, assim, poderão levar o tratamento em paralelo à busca de apoio espiritual. “O médico percebe que a espiritualidade pode ser uma excelente aliada na luta contra as adversidades e o sofrimento, que são inerentes ao adoecimento por câncer”, acrescenta.
Sofrimento
Lílian aponta que o estudo procurou fornecer subsídios para o planejamento de intervenções terapêuticas e pode contribuir, principalmente, na aproximação com o paciente em situação de sofrimento. “Muitas vezes os profissionais, que estão numa posição de acolher tanta dor e sofrimento, não têm com quem compartilhar seus sentimentos. Não dispõem de um espaço formal para cuidarem de si”, alerta. “Por essa razão, eles apontam a necessidade de maior atenção à dimensão psicológica do ser humano no currículo de graduação em Medicina, o que é recomendado pela filosofia dos cuidados paliativos”.
Segundo a psicóloga, com o amadurecimento do profissional, por mais que ele traga a marca positivista da formação, acaba olhando o paciente como ser humano, um ser integral e, portanto, um ser de possibilidades. “A maioria tem uma família constituída, pratica alguma atividade de lazer, ou seja, vivencia outros aspectos da vida, o que é fundamental para que enxergue também outras dimensões no paciente”, afirma.
Lílian observa ainda que o aprofundamento contemporâneo da questão da bioética, também fez surgirem muitas dúvidas e o próprio médico não tem um parâmetro claro dos limites, ou esses limites não estão tão claros. “O médico, no decorrer de sua formação e de sua prática, exercita forte obstinação terapêutica”, ressalta. “Mas, se ele começa a pensar na sua própria finitude, automaticamente vai pensar no outro, no que é morrer bem, do ponto de vista biopsicossocial e espiritual”.
Essas questões são abordadas em profundidade na disciplina O Câncer, a Morte e o Morrer, oferecida anualmente pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia, da FFCLRP. Os resultados da pesquisa serão apresentados ainda este mês para obtenção do título de mestre junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da FFCLRP. Os resultados preliminares do estudo, no entanto, já foram premiados, em agosto, no X Congresso da Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia e III Encontro Internacional de Psico-Oncologia e Cuidados Paliativos, realizados em Fortaleza, Ceará. A pesquisadora recebeu o primeiro lugar entre as comunicações orais e obteve a segunda colocação entre os pôsteres apresentados.
Para o orientador da pesquisa, os prêmios recebidos significam o reconhecimento da área de Psico-oncologia e revelam a necessidade de novas pesquisas para desvelar as percepções de um profissional que é chave nos serviços de saúde e que ainda ocupa uma função crucial dentro da assistência em oncologia, mesmo em época de multi e interdisciplinaridade. “Cuidar transcende o simples tratar, pois abarca, além das dimensões físicas, as demandas emocionais, espirituais, sociais, culturais e éticas do doente”, ressalta Manoel Antônio dos Santos. “Cuidar de alguém que vivencia sua finitude exige uma assistência que não seja centralizada nas necessidades físicas e no alívio da dor somente, mas que tende a ver a integralidade do ser, em seu caráter de impermanência”.
Texto: Rosemeire Soares TalamoneFonte: Agência USP
Publicado em: 16/09/2008

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Sobre a Morte e o Morrer

O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida deum ser humano? O que e quem a define?
Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto...” Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...” Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?".Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome de ética.Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.Muitos dos chamados "recursos heróicos" para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me".Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento.Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo.



Texto publicado no jornal “Folha de São Paulo”, Caderno “Sinapse” do dia 12-10-03. fls 3.Rubem Alves: tudo sobre o autor e sua obra em "
Biografias".