quinta-feira, 25 de junho de 2009

No banheiro da escola, um tiro

O caso da estudante de 15 anos que se matou com o revólver do pai levanta o problema da falta de controle do acesso de jovens às armas
Elida Oliveira, de Curitiba. Com Andres Vera

O CENÁRIO A fachada do colégio, no centro de Curitiba. Depois do suicídio de uma aluna, a direção optou pelo silêncio
Um tiro de revólver Taurus, calibre 38, calou para sempre a voz de Ana (nome fictício para preservar sua identidade). Em uma fração de segundo, sonhos, planos e projetos da garota de 15 anos ficaram para trás. A bala não a acertou por acidente nem foi disparada por um criminoso. Foi Ana quem puxou o gatilho.
Sua morte permaneceu à margem do noticiário. Nenhum retrato dela foi estampado nos jornais. Era uma adolescente bonita, cujos cabelos escuros contrastavam com a pele clara. Ana estudava no Colégio Bom Jesus, um dos melhores de Curitiba, no centro da cidade. Vivia com os pais – um delegado aposentado e uma enfermeira que prestava serviços comunitários – e com um irmão, de 21 anos, acadêmico de Direito da Universidade Federal do Paraná. Tinha tantos planos que ninguém percebeu o que estava tramando para aquela manhã da segunda-feira 23 de março.
Depois de tomar o café com os pais, Ana vestiu o uniforme – calça preta com listras verdes nas laterais –, calçou o tênis All Star vermelho, pegou a mochila e foi para a escola de carona com o pai. Ao se despedir, combinou com o pai que ele iria buscá-la na saída, às 18 horas. Poucos minutos depois, um estampido mudaria a rotina do Bom Jesus.
Ao entrar na escola, Ana não foi para a sala de aula de uma das 11 turmas do 2º ano do ensino médio, que ocupam o 2º e o 3º andares do prédio. Subiu mais alguns pavimentos em direção à FAE, a faculdade pertencente à mesma instituição. As aulas dos universitários começariam dali a 45 minutos. Às 7 horas da manhã, aqueles corredores estavam praticamente vazios. Não haveria ninguém que a impedisse de fazer o que planejava. Na mochila, carregada de livros e cadernos, Ana trazia um revólver de fácil manuseio, sem travas, registrado em nome do pai. Ninguém notou se o comportamento de Ana estava diferente, tampouco o objeto estranho entrando na escola. Se alguém sabia dos motivos que a levaram ao suicídio, manteve segredo.
Na mochila, ela trazia um revólver de fácil manuseio, que o pai guardava em lugar em princípio seguro. A morte da garota nas circunstâncias em que ocorreu é um caso raro no Brasil. Cinco anos atrás, um em cada oito estudantes de ensino médio no país afirmava já ter visto um revólver na escola. Acredita-se que hoje esse índice seja ainda maior. Suicídios desse gênero, em escolas, são ocorrências raras em termos estatísticos. Mas um dos detalhes alarmantes nesse caso é a facilidade com que se entra em uma escola com uma arma carregada. Em outros países, massacres cometidos em escolas se tornaram um pesadelo para pais, alunos e professores. No Brasil, por ora, o caso mais conhecido ocorreu não numa escola, mas no cinema de um shopping de São Paulo, em 1999: um estudante descarregou uma submetralhadora contra a plateia, matando três pessoas e ferindo quatro.
O que teria motivado Ana a se matar na escola? Quem a conhecia diz que sua personalidade era forte. Ela aparentava uma segurança atípica para a idade. Argumentava bem, defendendo suas ideias em conversas com amigos. Gostava de ouvir música clássica, mas também adorava o rock do Radiohead e do U2. Era prática e decidida. Quando queria um livro ou uma roupa, pesquisava as opções na internet até encontrar o melhor preço. Os pais não lhe negavam nada. Ana gostava de pintura, que praticava desde os 8 anos. Poderia ser uma grande artista plástica, mas pensava em cursar história (outra paixão) e, depois, fazer pós-graduação em história da arte. Já havia tentado alguns esportes, como o judô, mas achava o confronto desnecessário e logo perdeu o interesse. Em algum momento, não se sabe por quê, o desinteresse teria avançado para outros aspectos de sua vida.
Não houve grito nem pedido de socorro. Em silêncio, ela entrou no banheiro e se trancou num dos cinco espaços reservados. Sentada sobre a latrina, disparou contra a boca. Ninguém sabe ao certo como ela chegou a esse ponto. Ana não deixou bilhete algum.
Em todo o mundo, a mesma sensação de vácuo é sentida por amigos e familiares de pelo menos 3 mil pessoas que se matam todos os dias, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) – outras 60 mil tentam e não conseguem. O suicídio continua sendo um tabu na sociedade, embora seja uma questão de saúde pública. Medidas de prevenção podem fazer com que potenciais suicidas mudem de ideia antes de consumar o ato. Locais altos, por exemplo, podem ser isolados por grades que evitem quedas voluntárias. Remédios e produtos químicos que possam causar intoxicação devem ser mantidos fora do alcance de pessoas diagnosticadas com propensão ao suicídio.
Nos minutos após o disparo de Ana, os ânimos ficaram pesados dentro da escola. Ao mesmo tempo que as equipes médicas constatavam a morte da adolescente, os alunos eram informados de que deveriam entrar em contato com suas famílias para voltar para casa. “Eles disseram que uma aluna havia morrido, mas não disseram onde nem quem era. Fomos descobrindo enquanto descíamos as escadas”, diz um aluno do 2º ano. Boatos logo se espalharam: que haveria um tiroteio na escola, que alguém teria se enforcado no banheiro, que a adolescente teria se matado após uma briga com o namorado, que ela poderia estar grávida. Nada disso era verdade. Ana, ao que se saiba, nem mesmo tinha namorado.
Para a família, a dúvida sobre o que levou Ana a cometer o suicídio permanece no ar. “Se for para falar do que aconteceu, deveríamos tratar de bullying, porque armas em escola existe uma em 1 milhão; já bullying acontece em todas as escolas”, disse o pai, referindo-se à violência física ou psicológica repetitiva no ambiente escolar. Uma professora comentou que, se o problema fosse assédio moral, Ana tiraria o caso de letra: “Ela seria a primeira a reverter a situação”, afirma.
Três meses antes da tragédia, porém, Ana procurou os pais e pediu para que eles a levassem a um psicólogo. Dizia sentir-se triste e desmotivada. O pai passou a pegá-la na aula de pintura e levá-la semanalmente a um psiquiatra. No inquérito policial sobre o suicídio apurou-se que ela tomava calmantes para dormir, artifício para controlar a ansiedade que sentia. O único sinal percebido por uma das amigas teria sido uma frase escrita no serviço de recados instantâneos Messenger, o MSN, uma semana antes da tragédia. Ana se intitulou “A menina feita de leite e sangue”. A imagem tanto pode se referir à formação de uma identidade que queria se desvincular da infância quanto ao sangue que ela estava prestes a derramar.
Embora próxima à mãe, Ana, como muitas adolescentes, se desentendia com o pai. As brigas eram constantes. Visto como protetor pelos conhecidos, ele pouco a deixava sair sozinha e fazia questão de levá-la ao shopping, à casa das amigas e à escola, e ir buscá-la. A atitude incomodava Ana e era motivo de constante reclamação.
O ambiente escolar precisa ser um espaço de debate, para o jovem compartilhar seus medos e angústias. É o local ideal para o debate de temas sobre a adolescência e a prevenção da violência, já que muitos estudantes passam mais tempo na escola que em casa. Mas o Colégio Bom Jesus optou pelo silêncio. Funcionários disseram que estão proibidos de comentar o assunto. A direção do colégio não quis se pronunciar, alegando (compreensivelmente) que a morte da adolescente trouxe um grande desgaste para professores, alunos e equipe pedagógica. A direção teria apenas conversado com os estudantes da turma à qual Ana pertencia. Nas demais salas, os professores deveriam decidir, sozinhos, se comentavam ou não o caso.
De acordo com o estudante do 2º ano Filipe Narcolini Kroetz, de 16 anos, alguns professores abordaram os temas vida e moral ao tratar do assunto, relacionando-os às aulas de literatura e filosofia. Para a mãe de uma aluna do 1º ano do ensino médio, que preferiu não se identificar, a escola poderia ter se aproximado mais dos pais e alunos neste momento para discutir os temas pertinentes ao caso. “Não fui instruída pela escola sobre como debater esse assunto em casa”, afirma. “Eles também não convocaram uma reunião de pais para explicar quais sintomas poderiam ter sido percebidos e como fazer para ajudar nossos filhos na transição da adolescência.”
O silêncio prejudica a compreensão e a prevenção de outros casos semelhantes. O Brasil pode ainda estar distante da realidade dos colégios e faculdades dos Estados Unidos, onde alunos armados já provocaram centenas de mortes. As tragédias na Columbine High School, em Littleton, no Colorado, há dez anos, que deixou 15 mortos, e em VirginiaTech, na cidade de Blacksburg, em abril de 2007, com 33 mortes, despertaram em pais, alunos, professores e até na polícia a urgência de adotar medidas preventivas para evitar futuros massacres. “A tragédia de Columbine nos ensinou que o atirador nunca tem um perfil específico, mas que mesmo assim fornece pistas que podem ajudar a polícia ou a escola a prevenir esse tipo de acidente”, diz o jornalista americano Dave Cullen, autor do livro Columbine, ainda sem tradução para o português. É um primeiro passo para lidar com uma situação que pode produzir catástrofes.

Comentário

Ao ler o artigo “No banheiro da escola, um tiro” (Revista Época, p.164-166, mai/2009), uma preocupação me rodeou, dentre tantas outras.
Como educadora, fiquei pensando na Escola Bom Jesus – Curitiba, onde aconteceu o suicídio da jovem Ana (nome fictício) de 15 anos. As escolas, geralmente, não sabem como lidar com esse tipo de situação, afinal escolas preparam para a vida. No entanto a morte faz parte da vida.
Educadores tem que estar preparados para cuidar de situações como essas, pois como ficam os alunos?Os amigos? Os não tão amigos? Os pais? Os funcionários e também os professores? Todos precisarão de apoio para enfrentarem a situação.
É importante falar, discutir o assunto, ouvir, homenagear e principalmente não calar. As escolas, muitas vezes, acham que não falar sobre o assunto é a melhor maneira de “esquecer” e enfrentar a situação.
Puro engano! Numa situação como é a morte, as pessoas sentem necessidade de expor o que estão sentindo – a saudade, o medo, a falta, a raiva, a tristeza e muitos outros sentimentos são despertados numa situação como essa.
Uma escuta sensível por parte dos educadores num momento tão difícil como esse pode fazer uma grande diferença. “Ao escutar o aluno, com seus medos, indagações sobre o morrer e a morte, o professor vai além da disciplinaridade, liberando o aluno a romper com a dicotomia entre o cognitivo e o afetivo. Refletir sobre a realidade vivida dos alunos, valoriza-se cada um em particular, e possibilita um diálogo aberto e plural das necessidades que esses alunos apresentam” (Ariana, 2008, p.24).
O luto não deve ser calado. Silenciar a morte é assumir uma atitude de indiferença perante a situação. É responsabilidade dos profissionais da educação criarem uma postura diferente para lidar com o assunto. Kovács (2003) expressa muito bem esse desejo: “Cabe aos profissionais engajados no processo de rehumanização da morte abrir espaço para a expressão da dor, do sofrimento, numa atmosfera acolhedora, não compactuando com o silenciamento e abafamento trazidos por uma sociedade que fala sobre o ser forte , ou pelo menos discreto e, quando se trata de morte, não incomodar. Um ouvido disponível tem melhor efeito do que calmantes”.
Desejo que a Escola Bom Jesus, junto com seus educadores, consigam fazer o seu papel, enquanto instituição de educação, dando todo o apoio aos familiares, alunos e funcionários, os quais estão passando por uma “dor” tão difícil de suportar.

REFERÊNCIAS:

KOVÁCS, Maria Jùlia. Educação para a Morte: temas e reflexões. São Paulo. Casa do Psicólogo: Fapesp, 2003.

MAGALHÃES, Ariana T. de O. As Representações Sociais da Morte para Professoras e Pais em Instituições de Educação Infantil. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação, UnB: Brasília/DF, 2008.
Ariana Trindade de O. Magalhães
Pedagoga, Psicopedagoga, Especialização em Sexologia, Mestre em Educação pela UNB.