quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Aspectos sociais dos comportamentos suicidas - Reflexões acerca de “Sobre o suicídio”, de Karl Marx

Aproveitando as discussões a respeito da situação da moça italiana, e considerando a tão em voga temática do suicídio, posto o texto referente a apresentação que fiz no II Congresso em Morte e Morrer, realizado em Brasília, em 2008. O texto é uma análise do livro "Sobre o Suicídio", de Karl Marx.

O suicídio não deve ser visto como um ato aleatório de alguém que não sabe como lidar com frustrações e situações estresse. Há um propósito definido, resultado de uma lógica inflexível e implacável que move a pessoa rumo a uma única resposta (Wang e Ramadam, 2004). A autodestruição pode ser vista, assim, como um modo de resolver um dilema, uma situação considerada intolerável. Cabe aos pesquisadores, clínicos, equipes de saúde, entre outros, então, solucionar este quebra-cabeça produtor de um intenso sofrimento.

Karl Marx escreveu, em 1846, um ensaio a partir das memórias de Jacques Peuchet, ex-arquivista policial e curioso a respeito dos inúmeros casos de suicídio ocorridos na França. Neste ensaio, Marx nos dá várias idéias a respeito do que levaria uma pessoa à autodestruição. O ponto de partida para suas reflexões é a relação entre o suicídio e a sociedade. Para ele,
“As doenças debilitantes, contra as quais a atual ciência é inócua e insuficiente, as falsas amizades, os amores traídos, os acessos de desânimo, os sofrimentos familiares, as rivalidades sufocantes, o desgosto de uma vida monótona, um entusiasmo frustrado e reprimido são seguramente razões de suicídio para pessoas de um meio social mais abastado, e até o próprio amor à vida, essa força enérgica que impulsiona a personalidade, é freqüentemente capaz de levar uma pessoa a livrar-se de uma existência detestável.” (2006, p. 24).

Este trecho do ensaio de Marx chama atenção para uma gama de fatores de natureza diversa que podem levar ao suicídio. Essas “razões” que para Marx explicam porquê uma pessoa é levada a acabar com sua própria vida, hoje são consideradas fatores de risco, os quais envolvem a associação entre atributos do indivíduo, grupo ou ambiente que potencializam a chance de se estabelecer uma condição relacionada ou não a um determinado tipo de doença. No caso do suicídio ou tentativa de suicídio, as chances aumentam de forma diretamente proporcional ao aumento dos fatores de risco presentes (Meleiro e Teng, 2004). Assim, podemos fazer um paralelo entre as “razões para o suicídio” de Marx e conhecidos fatores de risco de suicídio:
a) “Doenças debilitantes”: inúmeros estudos mostram as correlações entre doenças mentais e suicídio e tentativa de suicídio (OMS, 2000). A Organização Mundial da Saúde aponta distúrbios de personalidade, esquizofrenia, alcoolismo e outros distúrbios mentais, orgânicos ou não, como grupos diagnósticos com grande risco de suicídio.
b) “Falsas amizades”: estudos demonstram que pessoas que tentam suicídio possuem uma rede de apoio social escassa e a percebem como insatisfatória. A falta de uma rede de apoio social eficaz pode resultar no aumento dos níveis de angústia, depressão e de estresse (Gaspari e Botega, 2002).
c) “Amores traídos”: problemas amorosos, conflitos familiares e conjugais são comumente identificados como determinantes de um ato suicida (Grossi e Vansan, 2002).
d) “Desgosto de uma vida monótona, um entusiasmo frustrado e reprimido”: no caso de adultos jovens, dificuldades em lidar com as demandas dessa etapa do desenvolvimento podem surgir, seja pela falta de objetivos de vida, por manterem projetos irreais, por criarem dependência de relacionamentos interpessoais instáveis, por encontrarem pouco apoio nesses projetos, ou mesmo pela falta de um projeto de vida real e eficaz (Tavares e cols, 2004).
e) “Rivalidades sufocantes”: a literatura mostra que a relação entre dificuldades enfrentadas no trabalho, considerado um elemento identitário fundamental no mundo contemporâneo, e características da experiência atual do indivíduo podem gerar angústias, conflitos e sofrimentos que podem irromper em estados de crise (Tavares, 2004). As pessoas podem desacreditar em suas chances de obter sucesso e ascender no mundo de hoje, em que a competição, o individualismo e a exclusão prevalecem (Tavares e cols, 2004).
f) “Sofrimentos familiares”: estudos apontam características comuns em famílias de suicidas, principalmente a presença de dinâmicas familiares disfuncionais (Osvath, Vörös, e Fekete, 2004; Gutstein, 1991; Koopmans, 1995; Shagle e Barber, 1993).
g) “Acessos de desânimo”: a depressão é um fator de risco para o suicídio, sendo o diagnóstico mais comum em casos de suicídio completo (OMS, 2000). A depressão também é mais associada a suicídios femininos que masculinos.

Apesar da obra tratar, sobretudo, do sofrimento das classes mais abastadas, é a miséria, segundo Marx, a maior causa do suicídio: a miséria gera a luta social e traz o sofrimento para a sociedade capitalista. Assim, seria o caráter capitalista da sociedade o gerador de tantos suicídios, o que leva Marx a questionar, justamente, o papel da sociedade no sofrimento do indivíduo:
“Que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões; em que se pode ser tomado por um desejo implacável de matar a si mesmo, sem que ninguém possa prevê-lo? Tal sociedade não é uma sociedade; ela é, como diz Rousseau, uma selva, habitada por feras selvagens.” (idem, p.28)

Marx considera que somente com uma reforma da ordem social poderiam ser feitas mudanças capazes de prevenir suicídios. Para ele, o suicídio é mais um entre uma infinidade de sintomas decorrentes da luta social, um exemplo da tirania familiar que não foi eliminada pela Revolução Francesa.

Ao fim do ensaio, Marx conclui que “na ausência de algo melhor, o suicídio é o último recurso contra os males da vida privada.” (p.48). Em resumo, Marx traz a idéia da sociedade como uma instância maior causadora de sofrimento, passando pelas rígidas normas impostas por esta à família, até chegar às características individuais, às idiossincrasias e vivências de cada um, que poderiam levar ao suicídio, visto pelo indivíduo como única saída desses perversos e angustiantes dilemas.

A obra de Marx nos mostra que considerar apenas fatores individuais como riscos e causas do suicídio é esquecer que este vive em uma família dentro de uma sociedade, seja ela qual for. Ignorar os elementos interacionais relacionados aos comportamentos suicidas limita qualquer trabalho de prevenção ao suicídio, que devem também considerar como fatores de risco a possível toxidade das relações familiares e das pressões sociais e culturais.

Referências bibliográficas

Gaspari, V.P.P. & Botega, N.J. (2002). Rede de apoio social e tentativa de suicídio. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 51 (4), 233-240.

Grossi, R. & Vansan, G.A. (2002) Mortalidade pos suicídio no município de Maringá (PR). Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 51 (2), 101-111.

Gutstein, S.E. (1991). Suicídio de adolescentes: a perda da reconciliação. In: Walsh, F., & McGoldrick, M. (1991). Morte na família: Sobrevivendo às perdas. (C.O Dornelles, Trad). Porto Alegre: Artes Médicas.

Koopmans, M. (1995). A case of family dysfunction and teenage suicide attempt: applicability of a family systems paradigm. Adolescence, 30, 87-94.

Marx, K. (2006). Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo Editorial.

Meleiro, A.M.A.S. & Teng, C.T. (2004). Fatores de risco de suicídio. In: Meleiro, A.M.A.S., Teng, C.T. & Wang, Y.P. (org). Suicídio: estudos fundamentais (pp. 109-132). São Paulo: Segmento Farma.

Nunes, M.F. (2007). Família e comportamento suicida: um estudo exploratório de dinâmicas familiares. Dissertação de mestrado

OMS. Preventing suicide: a resource for primary health care workers. Genebra: 2000. Disponível em http://www.who.int/mental_health/media/en/59.pdf

Osvath, P., Vörös, V. e Fekete, S. (2004). Life events and psychopatology in a group of suicide attempters. Psychopathology, 37, 1, 36-40.

Shagle, S., Barber, B.K. (1993). Effects of family, marital, and parent-child conflict on adolescent self-derogation and suicidal ideation. Journal of Marriage and the Family, 55, 4, 964-974.

Tavares, M. (2004). A clínica na confluência da história pessoal e profissional. In: Diniz, G., Vasques-Menezes, I., Lima, M.E.A. & Codo, W. (orgs). O trabalho enlouquece? Um encontro entre a clínica e o trabalho. Petrópolis: Editora Vozes.

Tavares, M., Montenegro, B. & Prieto, D. (2004). Modelos de prevenção do suicídio: princípios e estratégias. In: Maluschke, M. Bucher-Maluschke, J.S.N.F. & Hermanns, K. (orgs.). Direitos humanos e violência: desafios da ciência e da prática (pp. 231-258). Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer.

Wang, Y.P. & Ramadam, Z.B.A. (2004). Aspectos psicológicos do suicídio. In: Meleiro, A.M.A.S., Teng, C.T. & Wang, Y.P. (org). Suicídio: estudos fundamentais (pp. 79-96). São Paulo: Segmento Farma.

Um comentário:

Anônimo disse...

Si, probabilmente lo e