Seneca
"Durante toda a vida devemos continuar a aprender a viver"
Erick From
"Durante toda a vida devemos continuar a aprender a morrer"
quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
segunda-feira, 26 de janeiro de 2009
Sobre Solaris
Solaris,Imagine um planeta descoberto quase por acaso, um planeta que possui um imenso oceano, não se divisa terra firme. Mas um oceano complexo, vivo, dotado de inteligência. Esse é o desafio que Stanislaw Lem, escritor polonês, propõe no seu livro de 1961.
Não há meio termo, ou se odeia ou se admira Solaris. Na verdade, trata-se de uma obra de ficção que nos remete a um profundo questionamento da nossa própria psique.
O filme foi produzido pelo cineasta russo Andrei Tarkovski, estreou em 13 de maio de 1972 no Festival de Cannes, no qual foi agraciado com o Prêmio Especial do Júri. Em 2002, foi realizada, nos Estados Unidos, uma outra versão, dirigida por Steven Soderbergh, que reacendeu o interesse pelo texto de Lem.
Para analisar as implicações psicológicas do filme, buscamos o ensaio do doutor Rafael Raffaelli que remete a uma interpretação de Carl Gustav Jung. O eixo teórico reside na inter-relação entre episteme (conhecimento) e processo de individuação (autoconhecimento), com ênfase na questão do arquétipo do si-mesmo, tal como concebido na perspectiva junguiana. Três questões são trabalhadas: a) Quais as referências históricas e filosóficas presentes na narrativa? b) Como os personagens e as situações narradas podem ser interpretados a partir das formulações teóricas junguianas? e c) Como se conectam nessa interpretação o conhecimento e o autoconhecimento?
A trama da obra gira em torno aos estranhos fenômenos que acontecem na estação espacial Solaris. Kelvin é enviado à estação para averiguar esses fenômenos e avaliar a conveniência do seu abandono. Já na estação, fica sabendo que um dos três cientistas-tripulantes se suicidou (seu amigo Gibarian); os outros dois (Snout e Sartorius) agem de modo suspeito. A causa dessa situação são as criaturas-psi – corporificações de memórias ou desejos – que surgem inopinadamente aos tripulantes durante o sono. Logo após sua chegada, Kelvin entra em contato com a materialização de Hari, sua ex-mulher que se suicidara na Terra.
O centro da narrativa é o oceano, um ser ininteligível que teima na sua solidão, com o qual se procura obter contato a gerações, sem sucesso. O oceano recobre inteiramente o planeta Solaris e acima dele orbita a estação espacial homônima habitada por alguns cientistas ligados à "Solarística", isto é, ao ramo da Ciência dedicado unicamente ao estudo de Solaris. O oceano é considerado uma forma primitiva de evolução para os biólogos, mas para os físicos, ele é visto como uma estrutura orgânica complexa, capaz de exercer influência sobre a órbita do planeta.
Ao contrário dos organismos terrestres, ele não levara centenas de milhões de anos para adaptar-se ao meio ambiente – culminando nos primeiros representantes de uma espécie dotada de razão –, mas dominara-o imediatamente.
Podemos pensar no oceano como uma metáfora do inconsciente ou, numa formulação mais precisa, como o si-mesmo, o centro da psique na teoria junguiana, "aquela indescritível totalidade (ou inteireza) do homem que não pode ser visualizada, mas que é indispensável como conceito intuitivo" . A sua evolução lembra a espontaneidade do surgimento dos arquétipos, que se apresentam sob um caráter numinoso, "que poderíamos definir como 'espiritual', para não dizer 'mágico'"
Sob a superfície do oceano nada pode ser observado, embora a função inconsciente continue atuando sem que o ego perceba. O ego fica restrito à visão da superfície, captando certos sinais – como nos sonhos ou nos sintomas – sem que possa decifrá-los.
O texto da novela sublinha o dilema de uma ciência ("Solarística"), que não pode aceitar a existência de fenômenos que superem a sua capacidade de compreensão numa determinada época e, dessa forma, o excesso é tratado como mito. A resposta racional ao desconhecido é a especialização do saber. Assim, reconhecida a diversidade do mundo e sua infinita complexidade, resta dividir o conhecimento em áreas praticamente estanques –tentando cada qual sua verdade particular e carente de síntese –, nas quais os enigmas tornam-se problemas científicos, sem que com isso sejam solucionados.
A falta de um sentido de comunhão com o cosmos, a incapacidade humana de se ver como parte integrante da Natureza, impossibilita a compreensão de que aquilo que procuramos fora, no mundo exterior – isto é, no planeta Solaris –, é um reflexo do Homem. O si-mesmo, representação última do ser, é tanto fonte da humanidade como do mundo, pois ultrapassa as fronteiras do psíquico: "A individuação não exclui o mundo; pelo contrário, o engloba".
O oceano seria, assim, a representação do arquétipo central, de tudo de misterioso e enigmático que encontramos nas entranhas de nosso próprio ser e no mundo, sobre o qual nada de positivo pode ser dito.
Muitas vezes, temos a impressão de que a psique pessoal galopa em torno desse ponto central como um animal assustado, ao mesmo tempo, fascinado e temeroso; embora fuja constantemente, cada vez mais se aproxima do centro. Não quero dar ensejos a mal-entendidos, nem quero que pensem que sei algo a respeito da natureza do "centro", pois este é simplesmente incognoscível. E a compreensão do si-mesmo ocorre pelo simbolismo que ele elicia, transformando determinadas manifestações culturais e certos objetos – ou imagens (formas) deles derivadas – em representações da totalidade.
O oceano – o centro da personalidade – é tomado ora como um sábio, que despreza o contato, ora como um autista, incapaz de se comunicar . Há aqueles que encaram o Homem como uma tabula rasa. Há aqueles que negam o inconsciente. Há aqueles que crêem que do íntimo do Homem só brote a violência e o sexo. Inversamente, há também aqueles que, endeusando e mitificando o si-mesmo, buscam estabelecer o contato com o centro da personalidade através do misticismo, dos regimes alimentares, dos exercícios físicos, da submissão a um guru ou a uma seita – "tudo isto porque não se consegue mais conviver consigo mesmo e porque falta fé em que algo de útil possa brotar de nossa própria alma" (Jung, 1994, p. 109). Tanto o realismo como o misticismo falham em procurar nos mecanismos e processos exteriores a chave para o conhecimento do si-mesmo.
As categorias de espaço, tempo e causalidade não se aplicam ao oceano, que existiria eternamente igual a si-mesmo, do mesmo modo que o inconsciente, que existe de forma "transespacial" e "transtemporal", correspondendo àquilo que se qualifica simbolicamente como "eternidade". Mas a dúvida fundamental da "Solarística" era saber se o oceano era consciente e se era possível comunicar-se com ele. Poder-se-ia falar em "pensamento" em relação às atividades do oceano? Lem descreve essas atividades como sendo uma "autometamorfose ontológica", contudo, "é uma montanha somente uma imensa pedra? É um planeta uma enorme montanha?" .
Primeiramente, pensou-se em estabelecer contato através de uma curiosa propriedade do oceano, sua propensão à imitação de objetos, expressa nas "formações mimóides que poderia ser entendida como uma tendência à repetição inconsciente. Essa característica do oceano – sua suposta gratuidade somada à complexidade de configuração – é um símile do processo inconsciente, no qual as imagens são 'copiadas' e reelaboradas gerando figuras de pesadelo, aparentemente destituídas de sentido.
Com o fracasso da análise dos "mimóides", a única indicação de contato eram os estranhos fenômenos que ocorriam com os tripulantes, à sua revelia, e que ameaçavam levar a estação orbital ao colapso. A "Solarística" chega a um impasse após anos de pesquisa infrutífera e necessita do concurso de um psicólogo (Kelvin) para discriminar o delírio da realidade, a alucinação da percepção verdadeira, socialmente estabelecida, e avaliar a conveniência da continuidade dos trabalhos de pesquisa na estação. Mas ele também se confronta com seus próprios complexos, minando a persona racionalista do psicólogo que analisa os delírios alheios.
O filme enfatiza a incapacidade do relato exato da percepção, como no deslocamento temporal do depoimento do piloto à comissão científica – do meio para o início da narrativa –, que visa a salientar esse aspecto. Percepções que não se conformam com a normalidade são consideradas alucinações. As imagens conscientes são a expressão cognitiva do indivíduo ou da coletividade que a produz e sua ruptura abre uma fenda, através da qual pode se expressar o símbolo, acercando-se do inconsciente. O descompasso entre a percepção do piloto (Burton) e a racionalidade fria de Kelvin coloca os limites da ação do próprio personagem. O psicólogo sabe distinguir o que é realidade e o que é alucinação? Em qual sentido?
No entanto, esse psicólogo, que se pretende racional, é colocado em meio às suas próprias angústias, sendo confrontado com a cópia feita de neutrinos ("criatura-psi") de Hari. Culpa reprimida surge como imagem irreprimível. Um tormento de consciência em que só a aceitação da limitação da racionalidade absolutista permite a Kelvin reconsiderar sua própria existência e sua relação com o Outro.
Pois nenhum conhecimento real advém sem que seja acompanhado de um autoconhecimento correspondente. Olhar para o oceano como um objeto a ser analisado não o torna capaz de penetrar nas entranhas da criação de seus próprios pensamentos desconexos, visto que, debaixo do feixe aparentemente monolítico da consciência vígil, residem idéias divergentes, contraditórias, angustiadas, esperando pacientemente a hora do sono, para poderem ser representadas em imagens oníricas.
O oceano presenteia o psicólogo com a consciência de sua própria elaboração psíquica – oriunda das esferas desejantes dos complexos – que, agindo no âmago de seu inconsciente, gera os fantasmas presentes na sua sombra. E essa purgação, finalmente, abre o caminho para a espiritualidade: "Às vezes, a consciência se acha na proximidade dos processos instintivos, e cai sob sua influência; outras vezes, ela se aproxima do outro extremo onde o espírito predomina" .
Quando Kelvin é "visitado" por suas memórias culposas, sua primeira reação é encarar o fato da perspectiva do ego. "Estarei ficando louco?" – é a pergunta que se faz. E, aparentemente, a única solução é estabelecer parâmetros de realidade, de realidade controlada, realidade científica. Mas ele dá-se conta da impossibilidade de controlar seus próprios pensamentos.
Mesmo enquanto sonhamos, quando estamos em perfeita saúde, conversamos com estranhos, fazemos-lhes perguntas e ouvimos suas respostas. Além disso, embora nossos interlocutores sejam, na realidade, criações de nossa própria atividade psíquica, desenvolvidas por um processo pseudo-independente, não sabemos que palavras sairão de seus lábios até que falem conosco. E, no entanto, essas palavras são formuladas por uma parte separada da nossa própria mente; por conseguinte, devemos estar conscientes delas no exato momento em que as arquitetamos a fim de colocá-las na boca de seres imaginários.
O que é sonho, o que é realidade? Kelvin mergulha nessa dúvida existencial, quando sua percepção já não dá conta de separá-los.
Entretanto, o processo de autoconhecimento ou de individuação só evolui quando se aceita a incapacidade do ego de controlar o todo da personalidade, superando os limites do inconsciente pessoal: "O si-mesmo, em sua totalidade, se situa além dos limites pessoais"
Desse modo, o ego deve superar os complexos presentes em seu inconsciente pessoal ou sombra e estabelecer um contato com as imagens arquetípicas através de sua anima ou animus. O contato com o si-mesmo é guiado pelas personalidades-mana4 ou iniciáticas: o herói, a sacerdotisa, o velho sábio, a feiticeira, entre outras representações. Essas personalidades-mana é que estabelecem o eixo ego–si-mesmo, quer dizer, a abertura consciente para o centro da personalidade. As criaturas-psi refletem, inicialmente, os complexos do inconsciente pessoal dos astronautas em Solaris, mas já contêm, in nuce, o princípio da transmutação psíquica, pois podem metamorfosear-se em personalidades-mana, possibilitando o contato entre o ego e o si-mesmo. Nessa perspectiva, Hari representa, primeiramente, a culpa reprimida na sombra e, depois, assume o papel de anima positiva ou caráter de transformação positivo para a personalidade de Kelvin.
Kelvin toma contato com seu lado negro e torna-se mais humano, ao se perceber falível e fragilizado. Kelvin, que a princípio parecia ser um personagem limitado e medíocre, revela-se possuído por "tabus" profundamente humanos, que o tornam organicamente incapaz de desobedecer à voz da sua própria consciência e de se esquivar ao pesado fardo da responsabilidade pela sua vida e pela dos outros. Kelvin é, assim, obrigado a reconhecer os sintomas a que está sujeito como resultado da atuação de seus complexos e os limites da racionalidade na psicologia, "cujo objeto exorbita os dois aspectos que nos são transmitidos através da percepção sensorial e do pensamento" .
E toda a pesquisa, toda exploração é também pesquisa e exploração do próprio self. Para onde quer que vamos – ao mais longínquo rincão do espaço – estamos sempre em confronto com nossos "fantasmas", que viajam conosco, espelhando aquilo que não queremos ver: "Não temos necessidade de outros mundos. Precisamos de espelhos" .
O Homem busca a fonte da luz, a episteme, mas onde existe luz, existirá também a sombra: "A luz e a sombra formam uma unidade paradoxal no si-mesmo empírico". Assim, os cientistas de Solaris começam a tomar consciência de que seus métodos intrusivos de investigação apresentam efeitos inesperados.
Mas Kelvin, realista convicto, tenta livrar-se, fisicamente, de seus problemas, como quem faz uma lobotomia, realizando um "divórcio por ejeção" enviando a réplica de sua finada esposa num foguete rumo ao nada. Mas essa "cura" não durará muito. A tentativa de anular o mistério, de negar a transcendência do fenômeno, provoca uma supressão do sintoma, mas o preço é o recalque dos aspectos mais essenciais da personalidade. Mas em Solaris o reprimido sempre retorna.
O oceano é, sem dúvida, a origem das criaturas-psi. Mas, frente à impossibilidade de se livrarem dos incômodos visitantes, os cientistas debatem inconclusivamente sobre o seu significado, concordando apenas que "são somente projeções materializadas por nossos cérebros, baseadas em um dado indivíduo" .
Quanto mais Kelvin mergulha nessas indagações, mais sua consciência se obnubila, retornando ao estado sonambúlico no qual se misturam a alucinação e a realidade. Ele dá-se conta, enfim, de sua incapacidade de solucionar o enigma, quando escuta a gravação que seu amigo Gibarian havia deixado antes de se suicidar.
Frente à impossibilidade de fazer cessarem as aparições de Hari, Kelvin conforma-se com seu destino e deixa de negá-la. Ao contrário, passa a amá-la, mesmo sabendo que ela provém do oceano, que é uma cópia feita de neutrinos, quer dizer, que é uma imagem provinda do centro de sua personalidade. Hari, contaminada pela dúvida, tenta até o suicídio, mas a imagem do mensageiro não tem o poder de autodestruir-se. Ganhando estatura humana, mesmo não sendo biologicamente humana, filosofa sobre sua composição e sua existência: "Ouvi o bastante para compreender que não sou um ser humano, sou apenas um instrumento".
Finalmente, numa última tentativa, os cientistas resolvem enviar em direção ao oceano os encefalogramas de cada um deles. É, nesse momento, que o psicólogo reconhece o dinamismo autônomo da psique e trava contato, então, com os aspectos ameaçadores que o encontro com o si-mesmo propicia. No entanto, superados os complexos, as criaturas-psi deixam de ser lembranças malquistas e são reconhecidas como componentes de sua própria personalidade e, assim, perdem razão de ser e desaparecem. Realizada a ligação entre o eu e o si-mesmo, cumprida a sua função de personalidade-mana ou iniciatória, os fantasmas se dissolvem, e o oceano – o self – pode ser reconhecido como o centro da personalidade.
No filme de Tarkovski – num movimento de câmera em zoom-out – surgem nesse momento ilhas na superfície do oceano, indicando um espaço possível da consciência, um locus propício a toda recordação, onde o personagem pode voltar ao tempo idílico de um passado morto. Numa dessas ilhas, Kelvin reencontra a datcha do início do filme, a casa ancestral – que tem raízes no inconsciente coletivo, pois fora projetada segundo o modelo da casa de seu bisavô. Agora é inverno, sua vida completa o ciclo. Seu pai, abandonado por ele na Terra, está dentro da casa e a chuva o molha. Simbolicamente, é a união da vida – a Grande Mãe – com a imago paterna, manifestação da totalidade. O psicólogo que negava o passado, conscientiza-se da inversão do momento e ajoelha-se para pedir o perdão do pai. Mas, ao recuperar o seu passado, ele o percebe ilusório, pois tudo isso ocorre numa condensação circunstancial do oceano – uma nesga de consciência que se diferenciou do inconsciente primordial.
A mensagem final do oceano é a da impermanência de toda representação, de toda materialidade representada, colocando em seu lugar a consciência da mortalidade e da dissolução.
No entendimento do diretor russo, a obra possui um claro significado: Solaris tratava de pessoas perdidas no Cosmo e obrigadas, querendo ou não, a adquirir e dominar mais uma porção de conhecimento. A ânsia infinita do homem por conhecimento, que lhe foi dada gratuitamente, é uma fonte de grande tensão, pois traz consigo ansiedade constante, sofrimento, pesar e desilusão, já que a verdade última nunca pode ser conhecida.
O conhecimento de que se trata não é o conhecimento técnico e dirigido a controlar o mundo externo, mas o autoconhecimento que propicia uma expansão da consciência.
Além disso, foi dada uma consciência ao homem, o que significa que ele é atormentado quando suas ações infringem a lei moral, e, nesse sentido, até mesmo a consciência envolve um elemento de tragédia. Os personagens de Solaris eram atormentados por desilusões, e a saída que lhes oferecemos era demasiado ilusória. Baseava-se em sonhos, na oportunidade de reconhecer as próprias raízes – aquelas raízes que, para sempre, ligam o homem à Terra onde nasceu.
Concluindo, tanto o texto de Lem como as imagens de Tarkovski possibilitam uma leitura de feitio junguiano, pois a temática central trata das limitações da cognição e sua inter-relação com o desenvolvimento da personalidade, fazendo referência ao inefável da experiência humana e à sua dimensão espiritual. Dessa forma, o conceito de si-mesmo – enquanto centro da personalidade e abarcando os seus aspectos conscientes e inconscientes – nos permitiria compreender a metáfora do oceano, pois, como vivência transcendente e ponto culminante do processo de individuação, ele não pode ser adequadamente descrito em palavras e o contato com o ego está obstaculizado pelos complexos, tal como o oceano é representado na narrativa.7
É através do autoconhecimento, isto é, do desenvolvimento da personalidade no processo de individuação, que esses complexos do inconsciente pessoal são dissolvidos, abrindo caminho para o reconhecimento da espiritualidade humana e da sua inserção última no cosmos atemporal que subsiste em cada sujeito.
Sem autoconhecimento, todo saber pode tornar-se deletério. Não compreenderemos de fato, algo "fora" de nós, que não esteja em relação ao nosso ser, à nossa própria dimensão íntima. Assim, postulada a impossibilidade de serem eliminadas as "considerações antropocêntricas" na Ciência, Solaris só pode ser efetivamente compreendido inserindo-se na vivência de quem o tenta compreender.
Baseado no texto de Rafael Raffaelli
Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Endereço para correspondência: Rua Aracuã, 351, Pantanal, Florianópolis, SC.CEP 88040-310. Tel/Fax: (48) 233-3247.
Endereço eletrônico: raraffa@aol.com
Universidade Federal de Santa Catarina
A Morte Não Irá Se Impor
Poesia de Dylan Thomas
Traduzido por Marcelo Fernandes
No filme de 2002, Solaris, o personagem Kelvin lê uma poesia enquanto conversa com sua “esposa”. A poesia é a seguinte:
A morte não irá se impor
Quando já nus os mortos cuja ossada
Se une a quem vai no vento ou sobre nada
Ao luar ocidental não forem nada,
Estrelas brilharão em seu redor;
Mesmo os loucos, ficarão sãos
Mesmo os que sob o fundo do mar estão
irão levantar-se novamente
Mesmo os perdidos por falta de amor, irão se redimir
E a morte não irá se impor.
A morte não irá se impor.
Nem contra aqueles destroçados no mar
Nem contra aqueles que foram absorvidos pelo mar sombrio
Mesmo aqueles cansados de trabalhar
Sofrendo nas mãos das tempestades
Nem contra esses a morte irá se impor
Mesmo que somente sobre a fé
E contra todas as evidências
Vem a desgraça de cima a baixo
Mesmo assim a morte não irá se impor
A morte não irá se impor.
Mesmo não ouvindo mais as gaivotas a cantar
Ou rebentando costa afora o mar
Mas onde já floriu se ora ao azar
Da chuva nem há flor, mesmo se for
Cinzas às cinzas tudo que era
Cada feição deles aflora cinzelada ao sol
Enquanto houver sol numa flor
Enquanto houver um pouco de esperança
A morte não irá se impor.
Traduzido por Marcelo Fernandes
No filme de 2002, Solaris, o personagem Kelvin lê uma poesia enquanto conversa com sua “esposa”. A poesia é a seguinte:
A morte não irá se impor
Quando já nus os mortos cuja ossada
Se une a quem vai no vento ou sobre nada
Ao luar ocidental não forem nada,
Estrelas brilharão em seu redor;
Mesmo os loucos, ficarão sãos
Mesmo os que sob o fundo do mar estão
irão levantar-se novamente
Mesmo os perdidos por falta de amor, irão se redimir
E a morte não irá se impor.
A morte não irá se impor.
Nem contra aqueles destroçados no mar
Nem contra aqueles que foram absorvidos pelo mar sombrio
Mesmo aqueles cansados de trabalhar
Sofrendo nas mãos das tempestades
Nem contra esses a morte irá se impor
Mesmo que somente sobre a fé
E contra todas as evidências
Vem a desgraça de cima a baixo
Mesmo assim a morte não irá se impor
A morte não irá se impor.
Mesmo não ouvindo mais as gaivotas a cantar
Ou rebentando costa afora o mar
Mas onde já floriu se ora ao azar
Da chuva nem há flor, mesmo se for
Cinzas às cinzas tudo que era
Cada feição deles aflora cinzelada ao sol
Enquanto houver sol numa flor
Enquanto houver um pouco de esperança
A morte não irá se impor.
terça-feira, 20 de janeiro de 2009
Oncologistas se sentem despreparados para lidar com a morte.
Estudo da psicóloga Lílian Cláudia Ulian Junqueira, desenvolvido na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, revelou que médicos oncologistas sentem a falta de abordagem das várias dimensões do ser humano no ensino de graduação. O estudo aponta que os médicos, apesar da marca positivista na formação, já enxergam além dos aspectos orgânicos do paciente. “Além da formação acadêmica, o profissional precisa entender a própria finitude para poder olhar as várias dimensões do paciente que vivencia sua terminalidade”, diz a pesquisadora.
Na pesquisa, orientada pelo professor Manoel Antônio dos Santos, da FFCLRP, Lílian entrevistou oito oncologistas. Para a coleta e análise dos dados utilizou o método fenomenológico, que se propõe a ir à essência das coisas, valorizando para tanto a descrição que cada participante do estudo oferece de suas vivências. Os resultados revelaram que os médicos têm uma abertura para a compreensão da experiência religiosa do paciente. No entanto, o fazem com muita dificuldade e ambigüidade quanto às condutas a serem adotadas, o que os faz transitar entre o cuidar autêntico e o inautêntico.
“Apareceram momentos em que eles se sentiram desconfortáveis ou mesmo irritados, por exemplo, quando o tratamento é preterido pelo paciente, que o coloca em segundo plano, justamente na hora em que se esperava adesão à terapêutica instituída. Nesses casos, as possibilidades de cura são delegadas a Deus. Nessa hora, o profissional se sente impotente e destituído de importância”, conta Lílian. “Em outros momentos, eles perceberam que o paciente necessita do movimento de se `religar` com o transcendental, que a religiosidade propõe, lembrando aqui da origem etimológica do termo religião”.
De acordo com a psicóloga, os médicos contam que respeitam as crenças dos pacientes porque sabem que, com isso, conseguirão se aproximar deles e, assim, poderão levar o tratamento em paralelo à busca de apoio espiritual. “O médico percebe que a espiritualidade pode ser uma excelente aliada na luta contra as adversidades e o sofrimento, que são inerentes ao adoecimento por câncer”, acrescenta.
Sofrimento
Lílian aponta que o estudo procurou fornecer subsídios para o planejamento de intervenções terapêuticas e pode contribuir, principalmente, na aproximação com o paciente em situação de sofrimento. “Muitas vezes os profissionais, que estão numa posição de acolher tanta dor e sofrimento, não têm com quem compartilhar seus sentimentos. Não dispõem de um espaço formal para cuidarem de si”, alerta. “Por essa razão, eles apontam a necessidade de maior atenção à dimensão psicológica do ser humano no currículo de graduação em Medicina, o que é recomendado pela filosofia dos cuidados paliativos”.
Segundo a psicóloga, com o amadurecimento do profissional, por mais que ele traga a marca positivista da formação, acaba olhando o paciente como ser humano, um ser integral e, portanto, um ser de possibilidades. “A maioria tem uma família constituída, pratica alguma atividade de lazer, ou seja, vivencia outros aspectos da vida, o que é fundamental para que enxergue também outras dimensões no paciente”, afirma.
Lílian observa ainda que o aprofundamento contemporâneo da questão da bioética, também fez surgirem muitas dúvidas e o próprio médico não tem um parâmetro claro dos limites, ou esses limites não estão tão claros. “O médico, no decorrer de sua formação e de sua prática, exercita forte obstinação terapêutica”, ressalta. “Mas, se ele começa a pensar na sua própria finitude, automaticamente vai pensar no outro, no que é morrer bem, do ponto de vista biopsicossocial e espiritual”.
Essas questões são abordadas em profundidade na disciplina O Câncer, a Morte e o Morrer, oferecida anualmente pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia, da FFCLRP. Os resultados da pesquisa serão apresentados ainda este mês para obtenção do título de mestre junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da FFCLRP. Os resultados preliminares do estudo, no entanto, já foram premiados, em agosto, no X Congresso da Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia e III Encontro Internacional de Psico-Oncologia e Cuidados Paliativos, realizados em Fortaleza, Ceará. A pesquisadora recebeu o primeiro lugar entre as comunicações orais e obteve a segunda colocação entre os pôsteres apresentados.
Para o orientador da pesquisa, os prêmios recebidos significam o reconhecimento da área de Psico-oncologia e revelam a necessidade de novas pesquisas para desvelar as percepções de um profissional que é chave nos serviços de saúde e que ainda ocupa uma função crucial dentro da assistência em oncologia, mesmo em época de multi e interdisciplinaridade. “Cuidar transcende o simples tratar, pois abarca, além das dimensões físicas, as demandas emocionais, espirituais, sociais, culturais e éticas do doente”, ressalta Manoel Antônio dos Santos. “Cuidar de alguém que vivencia sua finitude exige uma assistência que não seja centralizada nas necessidades físicas e no alívio da dor somente, mas que tende a ver a integralidade do ser, em seu caráter de impermanência”.
Segundo a psicóloga, com o amadurecimento do profissional, por mais que ele traga a marca positivista da formação, acaba olhando o paciente como ser humano, um ser integral e, portanto, um ser de possibilidades. “A maioria tem uma família constituída, pratica alguma atividade de lazer, ou seja, vivencia outros aspectos da vida, o que é fundamental para que enxergue também outras dimensões no paciente”, afirma.
Lílian observa ainda que o aprofundamento contemporâneo da questão da bioética, também fez surgirem muitas dúvidas e o próprio médico não tem um parâmetro claro dos limites, ou esses limites não estão tão claros. “O médico, no decorrer de sua formação e de sua prática, exercita forte obstinação terapêutica”, ressalta. “Mas, se ele começa a pensar na sua própria finitude, automaticamente vai pensar no outro, no que é morrer bem, do ponto de vista biopsicossocial e espiritual”.
Essas questões são abordadas em profundidade na disciplina O Câncer, a Morte e o Morrer, oferecida anualmente pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia, da FFCLRP. Os resultados da pesquisa serão apresentados ainda este mês para obtenção do título de mestre junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da FFCLRP. Os resultados preliminares do estudo, no entanto, já foram premiados, em agosto, no X Congresso da Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia e III Encontro Internacional de Psico-Oncologia e Cuidados Paliativos, realizados em Fortaleza, Ceará. A pesquisadora recebeu o primeiro lugar entre as comunicações orais e obteve a segunda colocação entre os pôsteres apresentados.
Para o orientador da pesquisa, os prêmios recebidos significam o reconhecimento da área de Psico-oncologia e revelam a necessidade de novas pesquisas para desvelar as percepções de um profissional que é chave nos serviços de saúde e que ainda ocupa uma função crucial dentro da assistência em oncologia, mesmo em época de multi e interdisciplinaridade. “Cuidar transcende o simples tratar, pois abarca, além das dimensões físicas, as demandas emocionais, espirituais, sociais, culturais e éticas do doente”, ressalta Manoel Antônio dos Santos. “Cuidar de alguém que vivencia sua finitude exige uma assistência que não seja centralizada nas necessidades físicas e no alívio da dor somente, mas que tende a ver a integralidade do ser, em seu caráter de impermanência”.
Texto: Rosemeire Soares TalamoneFonte: Agência USP
Publicado em: 16/09/2008
Publicado em: 16/09/2008
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
Sobre a Morte e o Morrer
O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida deum ser humano? O que e quem a define?Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto...” Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...” Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?".Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome de ética.Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.Muitos dos chamados "recursos heróicos" para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me".Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento.Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo.
Texto publicado no jornal “Folha de São Paulo”, Caderno “Sinapse” do dia 12-10-03. fls 3.Rubem Alves: tudo sobre o autor e sua obra em "Biografias".
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